Próxima segunda no fórum: sexualidade feminina

setembro 15, 2011 às 1:18 pm | Publicado em Fórum de Debates | Deixe um comentário
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O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticeli

SEXUALIDADE FEMININA

  No “FÓRUM DE DEBATES” de SETEMBRO

19/09/2011 (segunda-feira) – das 19h às 21h

A Sociedade Paulista de Psicanálise promove mensalmente o “Forum de Debates”, com temas diversos e atuais com o intuito de trazer a tona reflexões sobre questões cotidianas. No debate deste mês, Sexualidade Feminina, o objetivo é identificar:

  • Primórdios das Manifestações da Sexualidade Feminina
  • A Relevância da Relação Pré-Edipiana
  • Os Efeitos da Castração:  03 possíveis consequências
  • Abertura para o Desenvolvimento da Feminilidade;
  • Saída Edípica: Equação Simbólica Pênis-Bebê
  • Leitura Lacaniana do Édipo
  • Lacan: “A Mulher Não Existe”
  • A Maneira Própria de Amar na Mulher
  • O Que quer uma Mulher?

Coordenação: Vera Lucia Muller Ando

Apresentação por Profa. Dra.  ALICE BEATRIZ B. IZIQUE BASTOS:

Doutora em Psicologia da Educação pela Universidade de São Paulo, com formação em Psicanálise pelo Instituto de Pesquisas em Psicanálise (IPP) da Escola Brasileira de Psicanálise. Profa do curso de Pós-Graduação em Psicopedagogia da Universidade Gama Filho e da Universidade Metodista de São Paulo, e autora do livro “A construção da pessoa em Wallon e a constituição do sujeito em Lacan”, publicado pela Editora Vozes, em 2003 e co-autora do livro “Henri Wallon: Psicologia e Educação” publicado editora Loyola, em 2001.

Investimento: R$15,00 para associados e R$30,00 para não associados.

                                          Dirigido ao público em geral

 Inscrições:  antecipadas na secretária com Beth.

De 2ª a 5ª, das 14h30 às 20h30.

Local: Sociedade Paulista de Psicanálise – Rua: Humberto I, 295 – Vila Mariana – Tel.: 5539-6799 – sppsic4@terra.com.br

Inscrições abertas até 16/09/10 Vagas Limitadas

A psicanálise e o esvaziar-se de si

setembro 13, 2011 às 5:31 pm | Publicado em Artigos | 2 Comentários
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“A palavra foi dada ao homem para encobrir seu pensamento”, Stendhal

Por André Toso

Entre as inúmeras contribuições da psicanálise para a humanidade, talvez a que mais se destaque é a abertura da possibilidade de escutar o outro. A figura do analista representa um esvaziar-se de si mesmo e abrir-se para as inquietações, conflitos e, fundamentalmente, para o discurso do paciente. Para tanto, é necessário que o analista deixe do lado de fora de seu consultório todas as suas opiniões morais e escute as demandas do paciente sem julgamentos ou concepções pré-definidas. É ouvir o outro em sua inteireza, de forma depurada e sem misturar-se com o que é falado. É ouvir por ouvir, sem a ansiedade de uma resposta que se enquadre em um diálogo. É ouvir sem sequer pensar em construir um diálogo racional. O diálogo se constrói por si mesmo, nas entrelinhas, sensações e naturalidades da fala do paciente. É essa fala do paciente que leva à resposta do analista, como num eco. Não se trata de um diálogo construído: trata-se de um diálogo que simplesmente nasce em si mesmo.

Por isso mesmo, o psicanalista inglês Donald Woods Winnicott (1896-1971) diz que a sessão psicanalítica é um momento sagrado. Sagrado, pois consiste em uma tentativa de encontrar a verdade que não está nas palavras e sim na essência do que é cada ser humano. A verdade que não pertence nem ao analista nem ao paciente. A verdade que pertence à própria experiência humana. Uma verdade intangível, que se estabelece diante da singularidade de cada um e escapa a teorias ou enquadres. Uma verdade que transcende – própria da experiência de cada paciente. Uma verdade que nunca é totalmente revelada, mas pode ao menos ser parcialmente iluminada.

Uma boa análise objetiva libertar o paciente de suas próprias amarras fantasiosas e das amarras do meio social em que ele vive. É libertar o paciente do discurso do Outro – como diria Jacques Lacan (1901-1981) –, do discurso dos pais e mães. Mas esses pais e mães ultrapassam em muito a barreira familiar e não são apenas os biológicos. A psicanálise busca libertar o paciente do discurso do poder, das instituições, tradições, imposições e até mesmo das leis que regem a vida social. É libertar o paciente do discurso inventado pela própria história humana. É desintoxicar a mente do excesso de discurso, do excesso de palavras, do excesso de regras estabelecidas que se estendem ao longo da trajetória humana. O papel da psicanálise é reinventar a experiência humana contestando tudo que até então foi imposto ao sujeito pelo discurso externo. É limpar os signos e símbolos em excesso que sufocam o humano e lhe tiram seu caráter misterioso, subjetivo, essencial e quase místico. A psicanálise trabalha com a palavra narrada para desgastá-la a ponto de ela perder sua importância central e restar apenas a essência. A palavra – que muitas vezes cega – é substituída pelo sentir.

É esse sentir que levará o paciente a criar sua própria ética. Uma ética que não responde a instituições ou regras estabelecidas, mas que ecoa dentro de sua essência. Uma ética que dispensa a obrigação e o apalavrado – que é essência em si mesma. O paciente, ao estar diante de um analista que se esvazia para contê-lo, aprende também a esvaziar-se para conter todos que o cercam na comunidade. Aprende a olhar o outro sem barreiras morais, respeitando as singularidades, experiências e vivências de cada um. Um ser humano analisado aprende a respeitar o espaço de si e do outro, separando o seu querer e poder do querer e poder do outro. Ele aprende a delimitar-se na relação com o outro, respeitando-o e sabendo instintivamente que para construir-se é preciso do outro, mas que esse outro também está ali para construir-se com ele. Esse paciente aprende a olhar a si e ao outro respeitando o mistério da experiência humana. Respeita-se a si, respeita-se o outro e respeita o próprio mistério do existir humano. É um ser que consegue esvaziar-se de si para acolher o outro. É alguém preparado a conviver com unidade e em comunidade.

Patologias do desvalimento: o vazio do não ser

agosto 9, 2011 às 1:51 am | Publicado em Artigos | 2 Comentários
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Autor: Olivan Liger

Colaboração: Clarisa Junqueira Coimbra

 Introdução:

Nessa primeira década do século XXI, ao lado de inquestionáveis avanços tecnológicos nas diversas áreas da saúde, a Psicanálise se defronta cada vez mais com um mal-estar cuja incidência nos consultórios aumenta a olhos vistos. Algo novo no seu campo de saber? Não. Porém, o que nos alerta é justamente o número de pacientes com queixa muito similar, e que muitas vezes tem sido diagnosticados com algum equívoco, baseados em critérios duvidosos de co-morbidade, conduzindo a tratamentos inadequados que resultam no abandono do tratamento pelos pacientes que não se sentem atendidos em sua demanda.

Não se trata de uma ocorrência inusitada, pois Freud, em 1926 já citava esse tipo de paciente portador de uma angustia automática e desamparo (Hilflosigkeit). A contemporaneidade e seus impactos contribuem para o surgimento de um número maior dessas pessoas, as quais pertencem a um grupo psicopatológico que denominamos de portadores de patologia do desvalimento, termo este, traduzido do espanhol (desvalimiento) pela editora Amorrortu, e que aparece na atualidade, principalmente nos diversos estudos da UCESUniversidad de Ciências Empresariales y Sociales de Buenos Aires, Argentina.

Os portadores dessa patologia são pacientes que apresentam uma desconexão com a realidade, em diversos níveis. Evidenciam no processo de tratamento psicanalítico um estado mental de desistência e completa desmotivação pela vida, não desejam nada e se acomodam no estado letárgico e monótono de um viver sem aspirações ou expectativas. Um quadro de depressão sem tristeza, neuroses traumáticas e tóxicas, transtornos alimentares ou abuso de substâncias, violência vincular e somatizações diversas. O que o singulariza e diferencia de qualquer outro diagnóstico é exatamente esse traço de um vazio afetivo e emocional como se desabitados de qualquer emoção ou afeto.

Desenvolvimento e conceituação:

Para situarmos a constituição do Sujeito, cabe-nos retomar a textos onde  diversos psicanalistas refletem sobre o desenvolvimento da sexualidade. Freud nos fala de um primeiro momento de vida onde a libido se concentra na região bucal e nas mucosas, estado narcísico por excelência, no qual o recém-nascido não reconhece o outro senão como uma extensão de si próprio.  Nessa fase da vida sob a prevalência do id, processo primário na busca da satisfação dos impulsos, imediata, irrefreável, do prazer a todo custo, aqui e agora. Para que este prazer seja satisfeito, o recém-nascido necessita ver atendidas suas demandas básicas de fome, sede, higiene e cuidados básicos, através dos quais se agregam os afetos- emoções e sentimentos – a contenção e o acolhimento da parte aquele que cuida.

Freud distingue dois tipos de consciência: a consciência oficial e secundaria relacionada ao trabalho interpretativo de tornar consciente o inconsciente e uma consciência anterior, que denominou de consciência originaria ou neuronal, anterior às marcas mnêmicas e as representações, capaz de captar a vitalidade pulsional como fundamento da subjetividade. Portanto, entende-se que a partir desse “sentir o afeto do outro”, ou seja, dessas impressões sensíveis, há um investimento na percepção desinvestida e indiferente na consciência neuronal. A partir dai cria-se a base para o surgimento da consciência secundaria, na qual se inscrevem as marcas mnêmicas.

Para que o Sujeito se constitua, essa consciência neuronal (biológica, das impressões corpóreas) precisa ser suficientemente investida, conter um registro que organiza o mundo sensível de forma diferente, base sobre a qual se dará o desenvolvimento do ego posteriormente.

Quando não há, ou o investimento do afeto é muito precário nessas primeiras semanas de vida, a percepção não investida irá impossibilitar um desenvolvimento saudável da consciência secundaria, ocasionando um enorme vazio afetivo que comprometerá de forma geral todas as etapas de desenvolvimento posteriores, resultando na inibição ou fragmentação do psiquismo. Analogamente, comparo esse fenômeno a uma atrofia dos membros superiores ou inferiores num recém-nascido e suas conseqüências posteriores no agir na vida.

Nesse vazio afetivo instala-se o desamparo, o temor de sucumbir e a identificação com a morte, resultando na angustia automática, somática, dada a falta de uma experiência que a mente não tem registro, fazendo prevalecer o princípio de inércia sobre o princípio de constância fundamental para a manutenção da saúde psíquica.

O princípio de inércia imposto pela pulsão de morte aparece na clínica sob a forma de apatia que faz com que o sujeito se torne insensível à dor e ao sofrimento com traços de caráter marcadamente narcísicos, uma vez que, sua constituição não alcançou o reconhecimento do outro. A pulsão de morte fará o seu trabalho, rompendo ligações entre pulsões, estancando partes da energia psíquica e assim construindo um universo de fragmentos impossibilitado de processar o mundo psíquico na forma do pensamento, como num texto cuja gramática impede a compreensão semântica.

Esse desvio para a estagnação ocorre antes da posição depressiva de Klein, portanto nos primórdios da posição esquizo-paranóide ou durante a fase de autismo normal citada por Mahler antes do período de “diferenciação”, comprometendo as sub-etapas de “separação” e “individuação”. Green criou o termo “mãe morta” para referir-se à mãe que embora presente fisicamente nos cuidados básicos de seu bebê, estava por alguma razão, afetivamente morta:

Uma imago que se constitui na psique da criança em conseqüência de uma depressão materna, transformando brutalmente o objeto vivo, fonte da vitalidade da criança, em figura distante, átona, quase inanimada, impregnando muito fortemente os investimentos de certos sujeitos que temos em análise e pesando sobre o destino de seu futuro libidinal, objetal e narcisista. A mãe morta é, portanto, ao contrario do que se poderia crer, uma mãe que permanece viva, mas que está, por assim dizer, morta psiquicamente aos olhos da pequena criança de quem ela cuida.

 Diferencio aqui a depressão com tristeza e a depressão sem tristeza. Na depressão com tristeza há a perda de um objeto introjetado, o sujeito se identifica com o morto, como no luto, enquanto na depressão sem tristeza, não houve perda do objeto porque este não existiu, impelindo o sujeito a se identificar com a morte, com o nada.

A este objeto frio, a “mãe morta”, Costa acrescenta:

Quando não existe empatia, a figura materna se inscreve na mente da criança como um interlocutor arbitrário que contraria a realidade, sendo ela precisamente uma representação dessa realidade que o objeto procura destituir de vida. Maldavsky denomina esse objeto de “déspota louco”, a cujo domínio absoluto o paciente sucumbe, tornando-se um ser desvitalizado. (p. 62)

  Segundo Evaristo de Carvalho (2008) (apud LIGER, 2010, p. 66):

Dor incomensurável, do nada, sem causa aparente, dor de existir, que se reporta a um vazio que clama em vão por uma palavra que possa simbolizá-la. Dor obscura, sem limites, cujo sentido está velado para aquele que sente. Dor, pesar e desinteresse são características de quem perdeu algo. Mas enquanto para alguns é possível o luto pelo reconhecimento de que o objeto da perda não mais existe, para outros parece que isso é impossível. Por não saberem exatamente o que perderam, caem no mundo obscuro e enigmático da melancolia.

 O seio bom (que nutre e que transmite afeto), aqui o nomeio de seio quente para estabelecer a diferença com o seio frio (que nutre, mas inexiste afetivamente), o qual é sentido pelo recém nascido e introjetado de tal forma a transmitir  e repetir em sua vida uma forma do que Green denominou de “núcleo frio que queima como um gelo” e que Costa infere como a expressão de “um amor gelado, efeito da perda de calor vital resultante de uma hemorragia libidinal”, que se apresenta na relação analítica no processo de transferência.

Zimerman complementa dizendo que diante do “congelamento” da mãe, o recém-nascido pode num primeiro instante protestar através de manhas, choros, gritos e sintomas somáticos, reagindo a aspereza da realidade. Se nada acontece, tende a assumir um estado de acomodação e de “apatia depressiva”. Se, por fim, de nada adiantar, o recém-nascido entra num estado de nada mais esperar do mundo exterior  que se expressa num estado de des-esperança, que será sua marca pela vida afora.

São pessoas que podem manifestar um estado apático ou como reação à apatia, um estado semelhante a mania, cumprem sua vida na constituição de uma família, na manutenção de bons cargos em corporações, contudo toda e qualquer expressão para o mundo exterior costuma ser desqualificada de afeto. Tendem a ser cordiais quando manifestam sua apatia ou agressivos e reativos quando tentam sair do seu estado apático. Muito frequentemente o portador de patologia do desvalimento mergulha na dependência química, na compulsão sexual ou nos transtornos alimentares, meios dos quais se serve na tentativa de preencher o vazio interno e não sucumbir ao terror que o ego sente de ser invadido. Devido a ausência de uma subjetividade constituída na significação afetiva, também encontramos toda sorte de sintomas somáticos em tais pacientes, como forma expressiva dessa ausência, desse vazio que ficou inscrito. Nada parecendo os motivar, vivem sem grandes aspirações e parecem desconectados de tudo a sua volta. No seu processo de vida, nos relacionamentos estabelecidos e em tudo relacionado a vínculos afetivos, há sempre a repetição do desamparo e do abandono.

 Manejo clínico:

 São pacientes de difícil acesso que demandam uma série de habilidades da parte do analista. Segundo Hornstein (2008):

Em seu trabalho com as patologias do desvalimento o psicanalista pode refugiar-se na técnica “clássica” ou pode por a prova sua singularidade e fazer suas opções dentro da diversidade atual da psicanálise. Adeus ao psicanalista “objetivo”, ao receptáculo que recebe as identificações projetivas sem juntar-lhes elementos próprios de sua realidade psíquica por temor a juntar algo de seu próprio repertório. E a neutralidade analítica? O analista é algo mais que o suporte de projeções e de afetos mobilizados pela regressão do paciente. A contratransferência revelará ao analista não só o seu saber como também seus recursos libidinais e relacionais que remetem a sua própria história. Sua subjetividade é uma caixa de ressonância historizante e historizada.

 Prosseguindo nessa linha do pensamento de Hornstein, cabe ao psicanalista atualizar e avaliar algumas questões tais como a relação realidade/fantasia; sistemas abertos/fechados;  séries que se complementam na história linear e recursiva; consistência, fronteiras e valorização do ego; relação verdade material/verdade histórica, assim como, a vivencia real e psíquica desde a infância até a atualidade; a diversidade de dispositivos técnicos que incluem as estratégias e programas. Estes aspectos configuram a trama conceitual que o psicanalista dispõe para aliviar os sofrimentos característicos do desvalimento.

A transferência esperada é referida anteriormente como o “amor gelado” ou afeto sem afeto, desconectado, ou ainda, no dizer de Zimerman, uma transferência natimorta, gerando no psicanalista uma contratransferência de desistência, resultante da identificação do analista com o objeto traumatizante do paciente e sentida como uma relação analítica desanimadora e apática ou contrariamente, uma reação de impaciência, raiva ou intolerância à apatia do paciente, tentando a todo custo retirá-lo de sua passividade. Diante da reação de impaciência do psicanalista, o paciente não será capaz de sentir nada do que lhe é falado, gerando-lhe a sensação de estar sendo invadido e retraindo-se cada vez mais.

Na clínica, a escuta identificará procedimentos discursivos que buscam evitar a intrusão da interpretação ou intervenção do analista. Prendem-se a um discurso inconsistente ou sobre adaptado dificultando ao psicanalista apreender o mundo anímico e confundindo-o quanto a uma pseudo evolução analítica. Maldavsky além de identificar o discurso inconsistente, também fala do discurso catártico que funciona como verborréia contínua  que evita qualquer espaço para a intervenção do psicanalista. É um discurso com prevalência de ansiedade resultando em reações coléricas. Há ainda o discurso numérico ou especulador, desinvestindo o mundo psíquico de características qualitativas em detrimento de características quantitativas, no qual o conteúdo simbólico é substituído por números, notas, scores, graus, quantidades, enfim cálculos. Esses três discursos identificados por Maldavsky são fundamentados na falta de qualificação afetiva, podendo haver relatos de afetos não sentidos pelo paciente e também pelo analista.

Ainda com base nos estudos de Maldavsky,  observa-se três traços de caráter comuns nesses pacientes: a viscosidade, o cinismo e a abulia. A viscosidade se manifesta como necessidade de usar o outro para se apegar a um mundo sensível, que ele é incapaz de sentir. Nessa modalidade de traço de caráter o paciente apresenta uma docilidade lamuriosa que tem como objetivo despertar a compaixão do psicanalista, do outro. Algumas vezes, sensibilizam muito o interlocutor. Na sessão de análise tentam estender o fim da sessão com a introdução de novos temas. A viscosidade visa conduzir o psicanalista à forma de relação vivida pelo paciente, que é esterilizante e frustrante despertando impulsos raivosos no psicanalista estimulando uma reação de se livrar do paciente, e dessa forma, repete seu ciclo de abandono, perda e desamparo. A viscosidade ainda poderá surgir no apego ao psicanalista através de constantes elogios ao seu trabalho, sem, no entanto, operar qualquer mudança eficaz no paciente.

O cinismo aparece na forma sarcástica, de pseudo felicidade e de indiferença, com o objetivo de assegurar e ocultar sua infelicidade de viver sem vida e sem futuro, de um viver desprovido de expectativa e esperança.

A abulia é evidenciada no estado de letargia, monotonia e na manutenção permanente do princípio de inércia, resultante da prevalência da pulsão de morte cujo desejo é “nada desejar”. Em determinados momentos do processo analítico, os pacientes abúlicos podem manifestar incontidos ataques de fúria como reação às tentativas do psicanalista de tirá-los desse estado. A abulia pode se transmitir de geração a geração, configurando o que Maldavsky chama de “linhagem abúlica”, resultado de processos vinculares tóxicos e traumáticos.

Para esse tipo de patologia, o psicanalista deve construir uma clínica do possível por tratar-se de pacientes com difícil acesso, um setting possível para cada paciente, visando um trabalho de análise, mantendo uma freqüência nem sempre desejada, mas possível, agendamentos a cada término de sessão e obtendo assim pequenas seqüências de atendimento.

O objetivo desse tipo de análise não se fundamenta no prazer-desprazer de uma erogeneidade representada, mas no princípio primitivo carente de inscrições psíquicas de tensão-alívio de descargas. Assim sendo, o modelo clássico de livre associação não é um recurso útil para esse paciente, ou seja, não cabe aqui incursionar pelo universo do inconsciente buscando novas significações às experiências vividas ou conexões outras que aliviem o sofrimento do paciente que nos procura, mas sim, lançarmo-nos no aquém, na busca de tornar consciente uma percepção, na medida em que não estamos na busca do que foi expulso, excluído, transmutado, mas do que não foi vivenciado, experimentado. É através da construção de experiências, (cindidas na ordem do sensível -cuidar/sem afeto-, portanto, ação sem sentimento, base sobre a qual o desvalimento se assenta), um caminho possível para se construir significação no vinculo analítico.

Cabe ao analista atuar com todos os seus recursos possíveis, ajudando ao paciente a perceber suas experiências, senti-las, vitalizá-las e pensá-las. Desenvolver no paciente sua função auto-observadora como forma de perceber-se e cuidar-se. Deve funcionar como um possível modelo de mãe viva, capaz de suprir os buracos negros deixados pela “mãe morta” de Green, importando-se, facilitando, reanimando, explicando, reconhecendo, contendo, discriminando, inter-relacionando-se e nunca desistindo do paciente.

Conforme observei em escritos anteriores:

O paciente portador de patologias do vazio demanda a ocorrência de uma regressão dentro do setting. A regressão é imprescindível como uma experiência de ligação. Metaforicamente é como ir buscar a criança do outro lado da rua para que, segura, ela aceite atravessá-la. Proporcionar uma relação de confiança e segurança no setting é importante para que o paciente possa regredir e assim recriar situações primárias do seu conflito vivenciadas com a mãe, na etapa de dependência absoluta. Na relação transferencial com o analista surge a oportunidade do trabalho analítico e terapêutico.

O setting deverá servir como útero psicológico para daí o self encontrar os recursos, antes ausentes, que possibilitem o seu desenvolvimento.

 As sessões e o setting precisam rever as fronteiras do modelo clássico transformando o espaço físico  num lugar de intimidade, de acolhimento tal e segurança irrestrita no qual o virtual se faça realidade, ancorando-se na figura do analista, dando continência ao ódio que é o que o paciente traz; ao contrapor com a disponibilidade desse acolhimento e escuta que cria a relação especular, constituindo assim a polaridade ódio-amor sobre a qual se erguerá um possível Sujeito. Com isto, a análise transita da ação interpretativa, elaborativa e  ressignificativa para uma ação inicialmente puramente construtiva e constitutiva.

A atividade interpretativa será bastante limitada ou praticamente ausente no início da análise de um paciente com patologia do desvalimento, uma vez que, não tendo uma subjetividade constituída em si, o paciente sentirá a interpretação como algo invasivo, que o pressiona, causando um desconforto tal que poderá fazê-lo recuar e abandonar a análise.

Conclusão:

Trata-se de um trabalho de longo prazo, com muitos obstáculos a transpor, avanços e recuos, exigindo do psicanalista a construção de um tempo/espaço analítico lento, porém sólido. Flexibilidade para lidar com os recursos analíticos e acuidade para perceber quando for necessário  introduzir novas intervenções e recursos, assim como, capacidade de fazer ver ao paciente que o psicanalista pode suportar seus ataques e indiferença e ainda assim, sobreviver, estar presente,  servindo como referência (objeto real) ao paciente, são habilidades imprescindíveis ao profissional que se propõe a atender esse tipo de patologia.

Enfim, a vitalidade permanente e ativa, e a maleabilidade do psicanalista servirão como motor nesse tipo de atendimento, promovendo lentas e pequenas mudanças, porém significativas no processo do paciente, que não experimentava nenhuma mudança sob o princípio de inércia, resultando numa transição lenta do domínio da pulsão de morte à prevalência da pulsão de vida possibilitando o movimento de alternância das pulsões que movem a existência humana.

Referencias bibliográficas:

        COSTA, G. P. et al. A Clínica psicanalítica das psicopatologias contemporâneas. Porto Alegre: Artmed, 2010

       GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Editora Escuta, 1988

       FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade. In: FREUD, S. Um estudo autobiográfico, inibições, sintomas e ansiedade, análise leiga e outros trabalhos (1925-1926) Rio de Janeiro: Editora Imago, 1976.

       __________. Luto e melancolia. In: Obras completas, v. 14. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1969, p. 287

       FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica (1895, 1950). Obras completas. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1976

       HORNSTEIN, L. Narcisismo: autoestima, identidade e alteridad. Buenos Aires: Editora Paidós, 2002

       __________.Intersubjetividad y clínica. Buenos Aires: Editora Paidós, 2003

       __________. Patologias del desvalimiento. Instituto de Altos Estúdios en Psicologia y Ciências Sociales, UCES. Disponível em:

       <http://www.uces.edu.ar/institutos/iaepcis/desvalimiento.php> acesso em 21 de Julho de 2011.

       LIGER, O. Um olhar psicanalítico sobre a contemporaneidade e suas emergências. Rio de Janeiro: Editora Livre Expressão, 2010

       MAHLER, M. et al. O nascimento psicológico da criança. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1977.

       MALDAVSKY, D. et al. La intersubjetividad en la clínica psicoanalítica. Buenos Aires: Lugar Editorial. 2007

       ZIMERMAN, D. E. Manual de técnica psicanalítica: uma revisão. Porto Alegre: Artmed, 2004

O divã além da porta

julho 25, 2011 às 9:00 pm | Publicado em Artigos | 1 Comentário
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Texto retirado do site do psicanalista Jorge Forbes (CLIQE AQUI PARA VISITAR) e publicado na revista Psiquê.

“Vocês ponham o divã virado para a porta. Se o paciente quiser sair sem olhar para vocês, ele simplesmente se levanta, abre a porta e vai embora”.

Eu estava no começo de meus estudos de psicanálise, mais ou menos na metade do meu curso de medicina. Quem me ensinava a posição correta no divã da sala de análise era um consagrado psicanalista da sociedade local, terno cinza, camisa branca, cara sisuda de conteúdo, com riso comedido. E ele não ficava aí: a esta pérola da posição do móvel se somavam outros ordenamentos práticos para o correto “setting terapêutico”, como assim era chamado.

Preferencialmente não se devia estender a mão ao paciente, o menor contato físico poderia ser desencadeador de fantasias ancestrais perigosíssimas ao tratamento. Por razão semelhante, nada de fotografias na sua sala. Imagine um psicanalista que mostrasse sua família ou seus amigos, quão perturbador poderia ser.  Melhor mesmo é que nem livros tivesse, para não revelar seu gosto literário, ou sua filiação científica. Vestir-se deveria ser sempre o mais discreto possível: homens de gravata, mulheres de saia abaixo do joelho, sempre de cores pálidas. Não atender, ah, isso era fundamental, não atender pessoas da mesma família, para que a transferência não se misturasse nas intricadas redes afetivo-familiares. Aliás, era melhor também não atender ninguém que morasse nas cercanias do consultório ou da casa do analista, pois já imaginou como seria horroroso, disruptivo mesmo, um paciente ver seu analista de bermudas em uma manhã de domingo comprando um jornal na banca da esquina?

Se para ser analista fosse necessário cumprir estas normas que para mim, apesar da pouca idade, me pareciam compor um forte bestialógico, eu ia ter que escolher outra coisa para fazer na vida. Minha crítica não recaía só sobre o cumprimento bobo dessa cartilha, mas especialmente sobre a ideologia que a sustentava. É fácil perceber que tudo está ali pensado para não “perturbar” o paciente. Ora, ora, uma análise foi feita para fazer dormir, ou para acordar? Assim descrita, ela serviria para não incomodar o paciente em seu sintoma, em seu sono irresponsável e inconsciente. Continuando, percebe-se que havia uma tentativa de transformar o analista, sua pessoa, seu corpo, em algo diáfano, invisível, o mais perto possível da famosa “tela em branco” sobre a qual o paciente projetaria suas angústias, na certeza de não vê-las misturadas com a pessoa que o atendia. Triste e capenga visão do que seja a intimidade de uma pessoa: a lombada de seus livros? Suas fotos? Seus amigos? Sua roupa? Não, nada disso, esses traços podem ser indicações, alusões – e quantas vezes falsas! – mas não dizem do cerne de uma pessoa. Aliás, aí está um dos desafios da psicanálise, o de levar a perceber que todas essas características são apoios provisórios da identidade que um analisando deve ir questionando, um a um, em seu trabalho analítico, desembaraçando-se do peso de suas identificações, para poder alcançar o mais íntimo do seu ser, algo de uma estranheza familiar, como diria Freud.

Já estava pronto para fazer outra coisa na vida, como escrevi – pensei em ser gastroenterologista, pois percebia que a maioria das queixas desse sistema se relacionava mais aos sapos comidos, que a pratos mal preparados – quando me deparei na Livraria Francesa da Rua Barão de Itapetininga, em São Paulo, com um livro de um tal de Lacan, que alguém me havia assoprado muito levemente, só dizendo que tinha ouvido falar que ele vinha afirmando coisas novas na psicanálise, lá pela Paris. Abri seu livro com o título provocador de “Écrits”, como se abre livros ao léu nas estantes das livrarias e me deparei com uma frase impactante, no capítulo intitulado “A direção do Tratamento”: “O analista faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser”. Claro que naquele momento não entendi muita coisa desse quase aforismo, mas entendi o suficiente para me convencer que havia uma outra psicanálise possível, diferente daquela cheia de rituais de isolamento obsessivos, e que eu poderia continuar em meu desejo de ser psicanalista. Apostei: literalmente embarquei e fui conhecer de perto esse verdadeiro acontecimento Lacan. Não me arrependi, continuo a viagem na certeza sempre mais clara que uma intimidade não se apreende nem nos detalhes de decoração, nem nas vestimentas, mas na ética de se responsabilizar, ou seja, de responder por esse desejo que sempre nos interroga. E que viva a Psicanálise, além de qualquer standard.

Análise: A Po-ética na Clínica Contemporânea (Gilberto Safra) II

junho 3, 2011 às 7:17 pm | Publicado em Análise | Deixe um comentário
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ANTES DE LER ESSE TEXTO, LEIA AQUI A PARTE I

O escritor Fiódor Dostoiévski, um dos pensadores que inspiraram Gilberto Safra a construir sua obra

INTRODUÇÃO – PARTE 2

Na segunda parte da introdução, para explicar como se baseou para escrever sua obra, Safra fala sobre a importância dos filósofos, escritores e pensadores russos do século XIX, que tinham como objeto de trabalho a ética humana e os sofrimentos decorrentes de seu esfacelamento. O autor considera que temos muito a aprender com esse pensamento russo, já que em nossa época parece ocorrer quebra semelhante do ethos humano (ethos, do grego, significa valores, ética, hábitos e harmonia). Na clínica, o terapeuta é informado, por meio do sofrimento de seus pacientes, desse mal-estar que acomete nosso tempo.

Safra destaca a paixão do povo russo pela filosofia e de como as questões da existência humana fazem parte do dia-a-dia desse povo. Para exemplificar de onde isso surge, cita as aldeias chamadas de mir, que ocupavam o solo russo em uma época antiga. Mir significava, ao mesmo tempo, povoado, mundo e paz. Tratava-se de uma vida comunitária, a vida de um dependia intrinsecamente da vida dos outros.  Por ser uma comunidade rural, a ligação desse povo com a terra era extremamente fundamental. Por isso, para esse povo, era impossível de pensar no ser humano sem o enraizamento na terra, sem considerar a importância do trabalho que a transforma e faz surgir as coisas e sem a convivência com outros seres humanos. Isso tudo forma o ethos humano, que possibilita mir: mundo, paz, aldeia, comunidade.

Outro fator fundamental da unidade russa foi a escolha da religião que seria oficialmente adotada. Segundo a tradição, o Príncipe Vladimir enviou diversos emissários que viajaram com o propósito de encontrar a religião verdadeira que seria adotada na Rússia. Retornaram e descreveram o que viram. A escolha pelo Cristianismo teve o seguinte argumento: eles haviam presenciado diversos cultos religiosos, mas nenhum podia ser comparado com a liturgia na Catedral de Santa Sofia, em Constantinopla (atual Istambul). Segundo eles, a beleza ali era de tal ordem que Deus deveria estar lá. O critério da verdade religiosa, portanto, foi a beleza. E isso ficou impregnado no pensamento russo, e aparece em Dostoievski quando ele afirma que “a beleza salvará o mundo”. Segundo Safra, a beleza, a verdade e o bom são, para o pensamento russo, facetas de um mesmo acontecimento e integram o ethos.

Um olhar para a condição humana

Outro fator histórico fundamental para a criação da tradição russa ocorreu mais tarde, com Pedro, o Grande. Ele considerava a Rússia isolada da cultura europeia e desenvolveu um projeto de abertura de fronteiras. Isso ocorreu com a construção de São Petersburgo. Diante disso, o pensamento russo se dividiu em dois: o eslavofílico e a inteligentsia. Os primeiros eram nacionalistas que queriam preservar a cultura russa da invasão estrangeira e viam o país como salvador do mundo. Já os segundos acolhiam as ideias ocidentais e ansiavam pela queda do Império e a construção de uma nova nação. Iniciavam, assim, a importação do marxismo.

Os autores que Gilberto Safra se apóia neste livro são da inteligentsia, pensadores que estavam preocupados com a questão social e política da Rússia, mas que, conforme a revolução se formatava, ficavam desencantados e desistiam de algumas ideologias para pensar mais sobre a condição humana em si. Exemplos são Fiódor Dostoiévski, Lev Tolstoi, Vladimir Solovyov, Nikolai Fedorov, Pavel Florenski, Nikolai Berdaiev, Sergei Bulgakov, entre outros. Esse pensamento russo ficou conhecido como Idade da Prata e serve como referência para a obra de Gilberto Safra, que explica porque eles são tão fundamentais para entendermos nosso tempo:

Esses autores testemunhavam o esfacelamento cultural que ocorria na Rússia no final do século XIX e no início do século XX e o decorrente adoecer humano. É frequente encontrar em seus escritos a preocupação com o futuro da humanidade, pela condições anti-humanas que pareciam intensificar-se com o passar dos anos. Nos textos desses autores são discutidas essas questões presentes não só na Rússia do início do século XX, como também, em tom profético, os problemas de nosso tempo, em que a natureza humana se estilhaça”

Segundo Safra, a obra desses pensadores recolhe e emoldura a face humana, explicitando o ethos. Eles evitam abstrações racionalistas e criam uma obra resistente à fragmentação da medida humana. Discutem o registro ontológico, existencial do ser humano. Por isso, seus escritos são eternos.

 O excesso de razão adoece o homem

De acordo com Safra, o estudo desses autores foi fundamental para que ele enxergasse o sofrimento humano com uma profundidade que ele desconhecia. Para ele, os pacientes que o procuram na atualidade apresentam um tipo de sofrimento que demanda uma modificação na maneira como se conduz o processo terapêutico. Ele explica:

 “Cada vez mais nos deparamos na clínica com um tipo de problemática humana que nos coloca, como foco e com urgência, o restabelecimento do ethos, o que nos leva ao estabelecimento de uma situação que possibilite o acontecer da condição humana a partir da compreensão daquilo que é ontológico no ser humano. É uma clínica que exige que o profissional possa estar situado no registro ético-ontológico, a fim de que possa ouvir a dor de seu paciente no registro de seu aparecimento”

De acordo com Safra, esse lugar é necessário para que o psicanalista situe-se à frente das queixas de seu paciente, mas sem reduzi-las ao já conhecido, ao simplesmente psíquico. Sem tentar teorizá-las ou apresentar receitas prontas e mágicas. Para o autor, na atualidade, em decorrência da fragmentação do ethos, o tipo de sofrimento da clínica não é apenas decorrente de uma dinâmica psíquica, mas de situações que reclamam a necessidade da constituição do si mesmo e da constituição do psíquico e o re-estabelecimento da ética na situação analítica. Ao ouvir seus pacientes, Safra constatou o mesmo sofrimento dos pensadores russos do século XIX.

“Muitos de nossos pacientes sofrem pelo desenraizamento, pelo fato de terem sido coisificados, reduzidos a ideias ou abstrações. Na atualidade, encontramos pessoas que são filhos da técnica e que sofrem da agonia do totalmente pensável”

Para Safra, os pensadores russos já alertavam para a impossibilidade de reduzir o ser humano em teorias, pois ele jamais poderá ser plenamente revelado ou explicado. Trata-se de uma questão ética, pois tentar enquadrar o ser humano em comportamentos padrões pode adoecê-lo profundamente, criando uma lucidez insuportável, um excesso de claridade. A condição humana acontece no enigmático, no obscuro, no indizível, no mistério. Portanto, analista em dúvida é analista ético. Safra explica sobre o perigo do totalmente pensado:

“Desde o racionalismo, o projeto intelectual do Ocidente tem sido teorizar sobre o ser humano, suspendendo sua condição enigmática e reduzindo-o a uma ideia, uma coisa, a um objeto, a um conceito. No entanto, frente a qualquer tentativa de apreensão intelectual, o homem é um ser que por sua própria natureza desconstrói qualquer formulação racional ou teórica. Compreender o homem através de qualquer conceito universal, seja o econômico, a sexualidade, ou a vontade de poder, é compreendê-lo por meio de uma abstração que o adoece e que instaura uma situação de barbárie silenciosa e imperceptível, que na maior parte das vezes só será compreendida em sua magnitude após muito tempo, quando seus efeitos já forem inegáveis”

A psicanálise está adoecida

Safra explica que essa tentativa de explicar o fenômeno humano cria a chamada hiper-realidade. Trata-se da criação de falsas realidades ou simulacros, que passam a determinar e organizar o viver humano. Toda hiper-realidade constitui o falso e o aparente, o que leva o ser humano ao desenraizamento de seu ethos. M. Epstein, em seu livro After The Future, afirma:

“A inteira vida da sociedade torna-se uma auto-apresentação vazia. Nem partidos políticos ou empresas são realmente criados, mas sim conceitos de partidos e empresas. Incidentalmente, a área mais real, a econômica, é até mais simulada do que todas as outras”

A criação dessas hiper-realidades, segundo Safra, propicia o aparecimento de falsos-selfs, personalidades simulacros, entre outras. No lugar do rosto, instaura-se a máscara.

“O rosto apresenta o mistério, enquanto a máscara, a objetificação. O rosto assinala que o homem nasce como uma indagação, que se desdobra ao longo da vida e que jamais é respondida. Ser indagação é acordar surpreendido pelo destino humano. O mistério coloca-se frente ao homem, com as questões do nascer, do outro, do convívio entre outros, da geração, da precariedade da vida, da morte e da pergunta que sempre se renova”

Na clínica contemporânea, constata Safra, as pessoas chegam para análise em desespero profundo por não encontrarem o rosto em si e no outro. Vivem como máscara entre máscaras e, no momento que a retiram, há um nada. Frente ao outro se perguntam: há alguém atrás dessa máscara? Essas são as agonias que testemunham as hiper-realidades. Esses pacientes clamam pela possibilidade de vir a formular as questões do destino humano. De acordo com o psicanalista, elas vivem na agonia do terrível, aspirando pelo sofrimento. Uma coisa é a agonia do não-ser. Outra é a oportunidade de sofrer em decorrência dos acontecimentos inerentes ao destino humano. Sofre apenas aquele que se apresenta rosto frente a outros rostos. Quem está de máscara apenas agoniza.

Por fim, para fechar a Introdução e seu pensamento, Safra afirma, com preocupação, que a própria psicanálise está adoecida, pois na maior parte das vezes está assentada sobre hiper-realidades. É preciso rever a atividade clínica, que deve estar ancorada no mistério e posicionada sobre o ethos humano. Safra, no fundo, propõe um aprofundamento ligado à frase dita por Freud: “Aonde quer que eu vá, eu descubro que um poeta esteve lá antes de mim”. É na subjetividade poética que o mistério da condição humana é celebrado. Safra, por isso mesmo, fecha o capítulo com um poema de Mário de Andrade que resume um pouco a condição humana:

 Esse homem que vai sozinho

Por estas praças, por estas ruas,

Tem consigo um segredo enorme

É um homem

 

Essa mulher igual às outras

Por estas ruas, por estas praças,

Traz uma surpresa cruel,

É uma mulher

 

A mulher encontra o homem

Fazem ar de riso, e trocam de mão,

A surpresa e o segredo aumentam.

Violentos.

 

Mas a sombra do insofrido

Guarda o mistério da escuridão.

A morte ronda com sua foice.

Em verdade, és noite.

 

Hoje o Grupo de Estudos é especial

maio 2, 2011 às 3:52 pm | Publicado em Notícias | 1 Comentário
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Hoje o Grupo de Estudos da obra de Sigmund Freud é especial e aberto a todos. A partir das 19 horas, Olivan Liger, psicanalista e integrante do Sinpesp, fala sobre “Três Ensaios Sobre a Sexualidade”. Além dos integrantes do grupo de estudos, todos os alunos e interessados em psicanálise estão convidado ao debate.

Saiba mais: www.sppsic.org.br

Pra que serve a psicoterapia?

abril 13, 2011 às 10:03 pm | Publicado em Artigos | 3 Comentários
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Por Fernando Savaglia

Preocupado com o comportamento problemático de seu filho na escola, o mafioso Tony Soprano pergunta à sua terapeuta:

– O que você acha que eu deveria fazer com ele, ir com calma ou pressioná-lo?

– Isto é difícil de responder – falou a analista.

– Quer aumento para responder? – perguntou o paciente, não disfarçando a irritação com a devolutiva da psicoterapeuta.

Este diálogo, transcrito de um dos episódios da série A Família Soprano, descreve bem a ideia simplória que muitas pessoas têm do processo da psicoterapia: pagamos para obter respostas objetivas sobre nossos afetos a alguém que se livrou completamente de suas neuroses.

O recentemente falecido José Ângelo Gaiarsa, provavelmente o maior terapeuta reichiano do Brasil, deixou em seu último livro publicado, Meio Século de Psicoterapia, contundentes opiniões sobre o processo. “Melhor ser visto, perante o paciente, como um aliado, até um cúmplice, do que se propor como uma autoridade imune ante os males do mundo no qual ambos vivem e no qual se formaram”.

É claro que a relação terapeuta/paciente tem importância fundamental em qualquer processo analítico. Porém, é unanimemente reconhecido entre os profissionais psi que cerca de 90% do que é dito pelo analista não é absorvido pelos pacientes.

A partir daí pode surgir a famosa e recorrente pergunta por parte do cliente: “estaria eu pagando para ter um amigo com quem possa desabafar?” Ou então, “como sei se a terapia está surtindo efeito?”

A resposta a esta pergunta pode parecer complexa. Muito melhor que elucubrações teóricas sobre esta ou aquela abordagem, podemos começar a respondê-la dando um exemplo de sensibilidade de um terapeuta que ao invés de tentar desarmar uma suposta neurose, soube ver no relato de seu analisando um caminho para aplacar aquela angústia. Para isso, faço uso de uma história do pedagogo e psicanalista Rubem Alves. Ele conta que certa vez recebeu um paciente que se queixava da falta de capacidade de se integrar ao mundo ao seu redor. As pessoas lhe pareciam fúteis, as relações sem profundidade e em seu trabalho estava cercado de situações injustas e egoístas. Alves, ao invés de buscar uma terapia de inclusão, isto é, tentar reintegrá-lo a este universo, num arroubo existencialista – não raro para alguns psicanalistas menos ortodoxos – sabiamente valorizou a sensação de desamparo do homem. Ressaltou sua capacidade de se deparar com a realidade e que ele havia transposto a primeira, e às vezes dificílima, etapa da construção de uma vida real.

A partir daí, juntos, analista e analisando se lançaram na aventura de buscar um lugar no mundo, apesar da “situação demencial da modernidade” como gostava de frisar Heidegger. Se em algum momento você sentir que não encontra no seu analista a figura de um cúmplice nesta jornada, existe um indício de que a terapia não está funcionando. Num mundo em que as realizações, algumas bem fúteis, se contrapõem à depressão e à ansiedade, gerando um padrão psíquico melancólico na sociedade atual, a verdadeira revolução é, justamente, transformar a sensibilidade, antes algoz, em uma janela onde se pode vislumbrar esse SER.

As palavras do genial cineasta e dramaturgo Domingos de Oliveira podem servir de norte para essa relação: “a vida oscila entre o terror e a glória. Do terror já se falou muito, e isso criou um mundo onde as glórias da vida estão ocultas. Já foi tudo muito denunciado. É preciso denunciar que vale a pena viver”.

Texto originalmente publicado no Sete Doses

O Século do Ego – Máquinas da Felicidade

março 14, 2011 às 8:00 pm | Publicado em Vídeos | Deixe um comentário
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Um dos mais controversos e delicados documentários sobre a psicanálise é de autoria do inglês Adam Curtis para a BBC. O Século do Ego fala de como um sobrinho de Freud que morava nos Estados Unidos usou a teoria do tio para revolucionar a publicidade e o comportamento do mundo. É um filme em tons fortes, que mostra como não aplicar a psicanálise. Anna Freud é uma das mais criticadas. Realmente, se analisarmos apenas pelo documentário, a impressão é de que a filha de Freud, como terapeuta e pensadora, foi um verdadeiro desastre. É um filme interessante, que deve ser assistido com reservas, pois parece exagerar no tom em alguns momentos.  Mas alguns erros da trajetória da psicanálise estão lá para nos lembrarmos de como não fazer. Segue abaixo a primeira parte, dividida em cinco vídeos. A série continua. Mais pra frente coloco o restante.

 

 

“Cisne Negro”: uma aula de introdução à psicanálise

fevereiro 28, 2011 às 6:13 pm | Publicado em Resenhas | 35 Comentários
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Por André Toso

Obs: quem não assistiu ao filme pode ter algumas surpresas estragadas se ler o texto.

Poucos diretores de cinema sofrem tanta influência da psicanálise quanto Darren Aronofsky. Em 2000, nas cenas finais de “Réquiem Para um Sonho”, filmou uma antológica sequencia em que os personagens se encolhem como fetos. No contexto da história, estava clara a influência do pensamento de Freud: o ser humano se origina do inorgânico e, durante toda sua vida, apresenta uma pulsão de retornar ao estado de ser nada. Em busca do equilíbrio biológico perfeito (homeostase), os seres humanos possuem uma atração instintiva pelo útero (o nascer) e pelo túmulo (o morrer). O ser humano luta em vida, de forma inútil, pelo fim de suas tensões internas. Luta por saciar-se.

Onze anos depois de “Réquiem Para um Sonho”, Aronofsky apresenta aos espectadores uma verdadeira aula introdutória à psicanálise no longa “O Cisne Negro”. Poucos filmes possuem referências tão perfeitas e bem amarradas à teoria psicanalítica. Talvez apenas o pesado “O Anticrito”, de Lars Von Trier, seja tão contundente.

A história do filme é simples. Nina (Natalie Portman) é uma bailarina que ganha o papel principal na peça “O Lago dos Cisnes”. Na história, uma princesa que se transforma em um cisne branco e precisa do amor sincero de um príncipe para retornar à vida humana. O príncipe, porém, se enfeitiça pelo Cisne Negro, que apesar de dissimulado apresenta o poder da sedução. O Cisne Branco se suicida diante do fato. É a morte do amor idealizado.

Nina nasceu para fazer o Cisne Branco. Completamente castrada, vive com a mãe, que lhe controla toda a vida. Mora em um quarto cor de rosa, cheio de bichos de pelúcia e demonstra uma pureza completa. Sua ligação com o sexo é infantil e imatura. Sem dúvida, o diretor mostra logo de cara que é nesta relação mãe/filha que mora o segredo do filme.

No roteiro, a figura do pai de Nina nem sequer é mencionado. A impressão é de que ela é propriedade única e exclusiva de sua mãe controladora. A simbiose é total. A falta da figura paterna criou uma relação de dependência doentia entre mãe e filha.  A mãe controla a filha, que aceita de forma masoquista o fato. A mãe de Nina é o personagem mais interessante do filme, pois mostra uma completa inconsciência do mal que faz para a filha. Sádica, alimenta o masoquismo da filha e vice e versa. É exatamente assim que muitas mães aparentemente legais estragam a vida de seus filhos.

Para conseguir interpretar o Cisne Negro, porém, Nina precisa se conectar ao seu lado mais ligado aos instintos. Aqui temos uma clara alusão ao aparelho psíquico montado por Freud. O Cisne Negro é o id, a parte inconsciente e que só se interessa pela satisfação do prazer. O Cisne Branco é o superego, o discurso da mãe que ficou colado à sua imagem. Nina não possui um ego. O superego monstruoso, construído pela mãe sádica, faz dela um ser sem vida, um boneco de ventríloquo que responde aos quereres maternos. Não existe nenhum brilho em sua existência, nenhum desejo. Mas para fazer o Cisne Negro é exatamente com esse lado desconhecido, encoberto pelo superego da mãe, que ela terá que entrar em contato.

Para conseguir enxergar esse lado obscuro, Nina recebe ajuda de seu professor Thomas Leroy (Vincent Cassel). Ele a intimida, a provoca para que o seu lado negro surja das profundezas de sua personalidade (ou a falta dela). Sem a figura paterna do pai, Nina sente ali a presença masculina que pode cortar a relação doentia com a mãe. Seria como a resolução de um Complexo de Édipo tardio, com a interferência de um homem mais velho e experimentado.

Conforme Nina se aproxima de seu lado obscuro, maior a resistência e a culpa. O ódio pela mãe, antes enterrado profundamente, começa a aparecer e se torna algo insuportável. É neste momento que a consciência de Nina se parte ao meio. Descobrimos que a personagem é esquizofrênica. O próprio nome da doença já dá a pista: “esquizo” significa corte ao meio. Nina agora possui duas identidades: o Cisne Branco e o Cisne Negro, o superego e o id. E é neste momento que ela se perde em si mesma, caindo no abismo de um terror sem nome, da falta de significado de seu mundo interno. É uma ruptura tão dolorosa que ela não suporta e é invadida completamente pelas emoções do id: no final do filme, não importam as consequências, ela precisa chegar até o final da apresentação, até o final de sua satisfação.

O diretor busca em todos os momentos mostrar essa dualidade. O branco e o preto aparecem em todos os momentos do filme, em roupas e cenários. A utilização de espelhos nos remete facilmente à teoria lacaniana. Nina sempre tem um espelho à sua frente e é ali que ela se confronta com a figura do outro. O ódio pela mãe, por exemplo, é projetado a todo o momento na figura da colega Lilly (Mila Kunis). Lilly seria o Cisne Negro perfeito, uma mulher atraente e sem culpas. Nina enxerga nela o seu duplo, a sua outra parte. E sente ódio, pois seu superego a pressiona a todo o momento para não entrar em contato com aquele lado obscuro. Ao mesmo tempo, dentro do conflito de seu aparelho psíquico, sente inveja e admiração por Lilly.

Assim como as personagens do clássico “Persona”, de Ingmar Bergman, Nina se confunde com Lilly, enxerga nela a parte do quebra-cabeças que falta para seu mundo interno se completar. No fim, Nina se entrega a essa parte obscura de si mesma, mas a culpa imposta pelo superego é tão grande que lhe resta uma vontade instintiva de voltar à estabilidade orgânica, ao fim das tensões. Entrar em contato com o Cisne Negro foi insuportável para Nina, assim como continuar atuando na vida como o Cisne Branco era um se arrastar diante da existência. Ao se encontrar com as duas partes de si, Nina não conseguiu dominá-las e aceitá-las. Na verdade, ela não estava preparada para isso, pois não tinha ego para suportar, interpretar e simbolizar. Sua mãe  não a libertou, não a deixou crescer. Nina era uma eterna criança que não teve estrutura para entender a natureza humana. Foi vítima de seus próprios conflitos internos.

VEJA O TRAILER DO FILME:

“O Discurso do Rei” e a situação analítica

fevereiro 21, 2011 às 6:23 pm | Publicado em Resenhas | Deixe um comentário
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Os atores Colin Firth (o rei George VI) e Geoffrey Rush (o terapeuta Lionel Lougue): o filme fala muito sobre a relação entre paciente e analista

Por André Toso

Em cartaz nos cinemas brasileiros e um dos favoritos para a conquista do Oscar, O filme “O Discurso do Rei” é uma verdadeira aula sobre a relação entre terapeuta e paciente na clínica psicanalítica. No roteiro, a história do Rei George VI, que, por conta de problemas de gagueira, não consegue discursar em público. O personagem, brilhantemente vivido pelo ator Colin Firth, sai em busca de uma solução até encontrar o terapeuta da fala Lionel Lougue (vivido pelo ator Geoffrey Rush).

Lougue, ator frustrado e adorador de Shakespeare, parece conhecer a fundo a teoria psicanalítica e a aplica de forma pouco ortodoxa para curar problemas de voz em seus pacientes. Apesar dos exercícios típicos da fonoaudiologia, o terapeuta sabe que as razões principais para a gagueira do rei moram muito mais nos calabouços emocionais do que nos problema físicos.

O primeiro aspecto que pode ser discutido é o fato de o terapeuta não possuir nenhum tipo de credencial para sua atividade. Em 1926, no livro “A Questão da Análise Leiga”, Freud defende com veemência que a atividade psicanalítica deve ser independente da medicina ou de qualquer outra formação acadêmica. De certa forma, é isso que ocorre nos dias de hoje, com a disseminação das sociedades livres de psicanálise pelo País e pelo fato dos cursos de psicologia serem incapazes de munir seus alunos para a complexidade da teoria do inconsciente. Freud também salientava a importância da análise pessoal do futuro psicanalista, única forma de ele estar preparado para enfrentar as transferências de uma análise.

No filme, Lougue, apesar de não seguir nenhum tipo de escola terapêutica, bebe de todas elas e mostra boa capacidade e sensibilidade no trato com o paciente. A sinceridade com que exerce seu ofício e o comprometimento e o desejo com a melhora do paciente já parecem lhe atribuir condições de realizar o atendimento. É neste momento que o terapeuta cria um vínculo perfeito com seu paciente, o auxiliando da forma mais honesta e, por que não, profissional possível.

O psicanalista Wilfred Ruprecht Bion (1897 -1979) consolidou o termo vínculo na clínica. Com seu conceito de continente/conteúdo, teoriza que o analista precisa criar uma ligação de confiança com o seu paciente e oferecer a ele uma recepção para sua dor (ele chamou isso de reverie). A falha ocorrida na formação emocional do paciente deve ser recebida pelo terapeuta, que deve contê-la, elaborá-la e devolvê-la ao paciente “desintoxicada”.

Winnicott (1896-1971), por sua vez, utiliza a expressão holding para falar sobre a relação entre paciente e terapeuta. O pediatra e psicanalista acredita que o sujeito só pode vir a ser com o apoio de uma mãe suficientemente boa em sua formação emocional. O papel do psicanalista, portanto, é auxiliar o paciente a encontrar a confiança egóica para criar as condições para ele vir a ser. No filme, a voz de George VI se torna mais firme conforme sua confiança em relação ao terapeuta aumenta. No momento que o rei faz a transferência e acredita no papel de seu analista, ganha confiança e se sente abraçado. A presença do outro, que passa a conhecer sua história e lhe compreender, neste ponto, lhe dá a segurança para vir a ser, para se expressar sem sobressaltos e inseguranças. É neste momento que a análise funciona e que, como diria Winnicott, ocorre um momento sagrado entre terapeuta e analista.

Muitos outros detalhes são interessantes em “O Discurso do Rei”. São claros os momentos de transferência, resistência, contratransferência e a necessidade de o analista em tratar o paciente como igual. Apesar de rei, quem dava as cartas no consultório era o terapeuta, que se manteve firme ao olhar seu paciente como um ser humano como outro qualquer, sem coroas ou tronos a interferirem em seu trabalho (fator fundamental para a psicanálise). No final, o laço terapêutico se fecha com a confiança do paciente em seu analista e um nascimento de seu desejo – real e espontâneo – de vir a ser. Se o discurso do rei é a voz de um povo, o discurso do terapeuta tem o papel de ser uma voz que desperta o analisando para o mundo dos seus próprios desejos. Em “O Discurso do Rei”, George VI precisa apenas do apoio de um homem que lhe enxergue de verdade, sem as fantasias de um rei.

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