Próxima segunda no fórum: sexualidade feminina

setembro 15, 2011 às 1:18 pm | Publicado em Fórum de Debates | Deixe um comentário
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O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticeli

SEXUALIDADE FEMININA

  No “FÓRUM DE DEBATES” de SETEMBRO

19/09/2011 (segunda-feira) – das 19h às 21h

A Sociedade Paulista de Psicanálise promove mensalmente o “Forum de Debates”, com temas diversos e atuais com o intuito de trazer a tona reflexões sobre questões cotidianas. No debate deste mês, Sexualidade Feminina, o objetivo é identificar:

  • Primórdios das Manifestações da Sexualidade Feminina
  • A Relevância da Relação Pré-Edipiana
  • Os Efeitos da Castração:  03 possíveis consequências
  • Abertura para o Desenvolvimento da Feminilidade;
  • Saída Edípica: Equação Simbólica Pênis-Bebê
  • Leitura Lacaniana do Édipo
  • Lacan: “A Mulher Não Existe”
  • A Maneira Própria de Amar na Mulher
  • O Que quer uma Mulher?

Coordenação: Vera Lucia Muller Ando

Apresentação por Profa. Dra.  ALICE BEATRIZ B. IZIQUE BASTOS:

Doutora em Psicologia da Educação pela Universidade de São Paulo, com formação em Psicanálise pelo Instituto de Pesquisas em Psicanálise (IPP) da Escola Brasileira de Psicanálise. Profa do curso de Pós-Graduação em Psicopedagogia da Universidade Gama Filho e da Universidade Metodista de São Paulo, e autora do livro “A construção da pessoa em Wallon e a constituição do sujeito em Lacan”, publicado pela Editora Vozes, em 2003 e co-autora do livro “Henri Wallon: Psicologia e Educação” publicado editora Loyola, em 2001.

Investimento: R$15,00 para associados e R$30,00 para não associados.

                                          Dirigido ao público em geral

 Inscrições:  antecipadas na secretária com Beth.

De 2ª a 5ª, das 14h30 às 20h30.

Local: Sociedade Paulista de Psicanálise – Rua: Humberto I, 295 – Vila Mariana – Tel.: 5539-6799 – sppsic4@terra.com.br

Inscrições abertas até 16/09/10 Vagas Limitadas

A psicanálise e o esvaziar-se de si

setembro 13, 2011 às 5:31 pm | Publicado em Artigos | 2 Comentários
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“A palavra foi dada ao homem para encobrir seu pensamento”, Stendhal

Por André Toso

Entre as inúmeras contribuições da psicanálise para a humanidade, talvez a que mais se destaque é a abertura da possibilidade de escutar o outro. A figura do analista representa um esvaziar-se de si mesmo e abrir-se para as inquietações, conflitos e, fundamentalmente, para o discurso do paciente. Para tanto, é necessário que o analista deixe do lado de fora de seu consultório todas as suas opiniões morais e escute as demandas do paciente sem julgamentos ou concepções pré-definidas. É ouvir o outro em sua inteireza, de forma depurada e sem misturar-se com o que é falado. É ouvir por ouvir, sem a ansiedade de uma resposta que se enquadre em um diálogo. É ouvir sem sequer pensar em construir um diálogo racional. O diálogo se constrói por si mesmo, nas entrelinhas, sensações e naturalidades da fala do paciente. É essa fala do paciente que leva à resposta do analista, como num eco. Não se trata de um diálogo construído: trata-se de um diálogo que simplesmente nasce em si mesmo.

Por isso mesmo, o psicanalista inglês Donald Woods Winnicott (1896-1971) diz que a sessão psicanalítica é um momento sagrado. Sagrado, pois consiste em uma tentativa de encontrar a verdade que não está nas palavras e sim na essência do que é cada ser humano. A verdade que não pertence nem ao analista nem ao paciente. A verdade que pertence à própria experiência humana. Uma verdade intangível, que se estabelece diante da singularidade de cada um e escapa a teorias ou enquadres. Uma verdade que transcende – própria da experiência de cada paciente. Uma verdade que nunca é totalmente revelada, mas pode ao menos ser parcialmente iluminada.

Uma boa análise objetiva libertar o paciente de suas próprias amarras fantasiosas e das amarras do meio social em que ele vive. É libertar o paciente do discurso do Outro – como diria Jacques Lacan (1901-1981) –, do discurso dos pais e mães. Mas esses pais e mães ultrapassam em muito a barreira familiar e não são apenas os biológicos. A psicanálise busca libertar o paciente do discurso do poder, das instituições, tradições, imposições e até mesmo das leis que regem a vida social. É libertar o paciente do discurso inventado pela própria história humana. É desintoxicar a mente do excesso de discurso, do excesso de palavras, do excesso de regras estabelecidas que se estendem ao longo da trajetória humana. O papel da psicanálise é reinventar a experiência humana contestando tudo que até então foi imposto ao sujeito pelo discurso externo. É limpar os signos e símbolos em excesso que sufocam o humano e lhe tiram seu caráter misterioso, subjetivo, essencial e quase místico. A psicanálise trabalha com a palavra narrada para desgastá-la a ponto de ela perder sua importância central e restar apenas a essência. A palavra – que muitas vezes cega – é substituída pelo sentir.

É esse sentir que levará o paciente a criar sua própria ética. Uma ética que não responde a instituições ou regras estabelecidas, mas que ecoa dentro de sua essência. Uma ética que dispensa a obrigação e o apalavrado – que é essência em si mesma. O paciente, ao estar diante de um analista que se esvazia para contê-lo, aprende também a esvaziar-se para conter todos que o cercam na comunidade. Aprende a olhar o outro sem barreiras morais, respeitando as singularidades, experiências e vivências de cada um. Um ser humano analisado aprende a respeitar o espaço de si e do outro, separando o seu querer e poder do querer e poder do outro. Ele aprende a delimitar-se na relação com o outro, respeitando-o e sabendo instintivamente que para construir-se é preciso do outro, mas que esse outro também está ali para construir-se com ele. Esse paciente aprende a olhar a si e ao outro respeitando o mistério da experiência humana. Respeita-se a si, respeita-se o outro e respeita o próprio mistério do existir humano. É um ser que consegue esvaziar-se de si para acolher o outro. É alguém preparado a conviver com unidade e em comunidade.

Patologias do desvalimento: o vazio do não ser

agosto 9, 2011 às 1:51 am | Publicado em Artigos | 2 Comentários
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Autor: Olivan Liger

Colaboração: Clarisa Junqueira Coimbra

 Introdução:

Nessa primeira década do século XXI, ao lado de inquestionáveis avanços tecnológicos nas diversas áreas da saúde, a Psicanálise se defronta cada vez mais com um mal-estar cuja incidência nos consultórios aumenta a olhos vistos. Algo novo no seu campo de saber? Não. Porém, o que nos alerta é justamente o número de pacientes com queixa muito similar, e que muitas vezes tem sido diagnosticados com algum equívoco, baseados em critérios duvidosos de co-morbidade, conduzindo a tratamentos inadequados que resultam no abandono do tratamento pelos pacientes que não se sentem atendidos em sua demanda.

Não se trata de uma ocorrência inusitada, pois Freud, em 1926 já citava esse tipo de paciente portador de uma angustia automática e desamparo (Hilflosigkeit). A contemporaneidade e seus impactos contribuem para o surgimento de um número maior dessas pessoas, as quais pertencem a um grupo psicopatológico que denominamos de portadores de patologia do desvalimento, termo este, traduzido do espanhol (desvalimiento) pela editora Amorrortu, e que aparece na atualidade, principalmente nos diversos estudos da UCESUniversidad de Ciências Empresariales y Sociales de Buenos Aires, Argentina.

Os portadores dessa patologia são pacientes que apresentam uma desconexão com a realidade, em diversos níveis. Evidenciam no processo de tratamento psicanalítico um estado mental de desistência e completa desmotivação pela vida, não desejam nada e se acomodam no estado letárgico e monótono de um viver sem aspirações ou expectativas. Um quadro de depressão sem tristeza, neuroses traumáticas e tóxicas, transtornos alimentares ou abuso de substâncias, violência vincular e somatizações diversas. O que o singulariza e diferencia de qualquer outro diagnóstico é exatamente esse traço de um vazio afetivo e emocional como se desabitados de qualquer emoção ou afeto.

Desenvolvimento e conceituação:

Para situarmos a constituição do Sujeito, cabe-nos retomar a textos onde  diversos psicanalistas refletem sobre o desenvolvimento da sexualidade. Freud nos fala de um primeiro momento de vida onde a libido se concentra na região bucal e nas mucosas, estado narcísico por excelência, no qual o recém-nascido não reconhece o outro senão como uma extensão de si próprio.  Nessa fase da vida sob a prevalência do id, processo primário na busca da satisfação dos impulsos, imediata, irrefreável, do prazer a todo custo, aqui e agora. Para que este prazer seja satisfeito, o recém-nascido necessita ver atendidas suas demandas básicas de fome, sede, higiene e cuidados básicos, através dos quais se agregam os afetos- emoções e sentimentos – a contenção e o acolhimento da parte aquele que cuida.

Freud distingue dois tipos de consciência: a consciência oficial e secundaria relacionada ao trabalho interpretativo de tornar consciente o inconsciente e uma consciência anterior, que denominou de consciência originaria ou neuronal, anterior às marcas mnêmicas e as representações, capaz de captar a vitalidade pulsional como fundamento da subjetividade. Portanto, entende-se que a partir desse “sentir o afeto do outro”, ou seja, dessas impressões sensíveis, há um investimento na percepção desinvestida e indiferente na consciência neuronal. A partir dai cria-se a base para o surgimento da consciência secundaria, na qual se inscrevem as marcas mnêmicas.

Para que o Sujeito se constitua, essa consciência neuronal (biológica, das impressões corpóreas) precisa ser suficientemente investida, conter um registro que organiza o mundo sensível de forma diferente, base sobre a qual se dará o desenvolvimento do ego posteriormente.

Quando não há, ou o investimento do afeto é muito precário nessas primeiras semanas de vida, a percepção não investida irá impossibilitar um desenvolvimento saudável da consciência secundaria, ocasionando um enorme vazio afetivo que comprometerá de forma geral todas as etapas de desenvolvimento posteriores, resultando na inibição ou fragmentação do psiquismo. Analogamente, comparo esse fenômeno a uma atrofia dos membros superiores ou inferiores num recém-nascido e suas conseqüências posteriores no agir na vida.

Nesse vazio afetivo instala-se o desamparo, o temor de sucumbir e a identificação com a morte, resultando na angustia automática, somática, dada a falta de uma experiência que a mente não tem registro, fazendo prevalecer o princípio de inércia sobre o princípio de constância fundamental para a manutenção da saúde psíquica.

O princípio de inércia imposto pela pulsão de morte aparece na clínica sob a forma de apatia que faz com que o sujeito se torne insensível à dor e ao sofrimento com traços de caráter marcadamente narcísicos, uma vez que, sua constituição não alcançou o reconhecimento do outro. A pulsão de morte fará o seu trabalho, rompendo ligações entre pulsões, estancando partes da energia psíquica e assim construindo um universo de fragmentos impossibilitado de processar o mundo psíquico na forma do pensamento, como num texto cuja gramática impede a compreensão semântica.

Esse desvio para a estagnação ocorre antes da posição depressiva de Klein, portanto nos primórdios da posição esquizo-paranóide ou durante a fase de autismo normal citada por Mahler antes do período de “diferenciação”, comprometendo as sub-etapas de “separação” e “individuação”. Green criou o termo “mãe morta” para referir-se à mãe que embora presente fisicamente nos cuidados básicos de seu bebê, estava por alguma razão, afetivamente morta:

Uma imago que se constitui na psique da criança em conseqüência de uma depressão materna, transformando brutalmente o objeto vivo, fonte da vitalidade da criança, em figura distante, átona, quase inanimada, impregnando muito fortemente os investimentos de certos sujeitos que temos em análise e pesando sobre o destino de seu futuro libidinal, objetal e narcisista. A mãe morta é, portanto, ao contrario do que se poderia crer, uma mãe que permanece viva, mas que está, por assim dizer, morta psiquicamente aos olhos da pequena criança de quem ela cuida.

 Diferencio aqui a depressão com tristeza e a depressão sem tristeza. Na depressão com tristeza há a perda de um objeto introjetado, o sujeito se identifica com o morto, como no luto, enquanto na depressão sem tristeza, não houve perda do objeto porque este não existiu, impelindo o sujeito a se identificar com a morte, com o nada.

A este objeto frio, a “mãe morta”, Costa acrescenta:

Quando não existe empatia, a figura materna se inscreve na mente da criança como um interlocutor arbitrário que contraria a realidade, sendo ela precisamente uma representação dessa realidade que o objeto procura destituir de vida. Maldavsky denomina esse objeto de “déspota louco”, a cujo domínio absoluto o paciente sucumbe, tornando-se um ser desvitalizado. (p. 62)

  Segundo Evaristo de Carvalho (2008) (apud LIGER, 2010, p. 66):

Dor incomensurável, do nada, sem causa aparente, dor de existir, que se reporta a um vazio que clama em vão por uma palavra que possa simbolizá-la. Dor obscura, sem limites, cujo sentido está velado para aquele que sente. Dor, pesar e desinteresse são características de quem perdeu algo. Mas enquanto para alguns é possível o luto pelo reconhecimento de que o objeto da perda não mais existe, para outros parece que isso é impossível. Por não saberem exatamente o que perderam, caem no mundo obscuro e enigmático da melancolia.

 O seio bom (que nutre e que transmite afeto), aqui o nomeio de seio quente para estabelecer a diferença com o seio frio (que nutre, mas inexiste afetivamente), o qual é sentido pelo recém nascido e introjetado de tal forma a transmitir  e repetir em sua vida uma forma do que Green denominou de “núcleo frio que queima como um gelo” e que Costa infere como a expressão de “um amor gelado, efeito da perda de calor vital resultante de uma hemorragia libidinal”, que se apresenta na relação analítica no processo de transferência.

Zimerman complementa dizendo que diante do “congelamento” da mãe, o recém-nascido pode num primeiro instante protestar através de manhas, choros, gritos e sintomas somáticos, reagindo a aspereza da realidade. Se nada acontece, tende a assumir um estado de acomodação e de “apatia depressiva”. Se, por fim, de nada adiantar, o recém-nascido entra num estado de nada mais esperar do mundo exterior  que se expressa num estado de des-esperança, que será sua marca pela vida afora.

São pessoas que podem manifestar um estado apático ou como reação à apatia, um estado semelhante a mania, cumprem sua vida na constituição de uma família, na manutenção de bons cargos em corporações, contudo toda e qualquer expressão para o mundo exterior costuma ser desqualificada de afeto. Tendem a ser cordiais quando manifestam sua apatia ou agressivos e reativos quando tentam sair do seu estado apático. Muito frequentemente o portador de patologia do desvalimento mergulha na dependência química, na compulsão sexual ou nos transtornos alimentares, meios dos quais se serve na tentativa de preencher o vazio interno e não sucumbir ao terror que o ego sente de ser invadido. Devido a ausência de uma subjetividade constituída na significação afetiva, também encontramos toda sorte de sintomas somáticos em tais pacientes, como forma expressiva dessa ausência, desse vazio que ficou inscrito. Nada parecendo os motivar, vivem sem grandes aspirações e parecem desconectados de tudo a sua volta. No seu processo de vida, nos relacionamentos estabelecidos e em tudo relacionado a vínculos afetivos, há sempre a repetição do desamparo e do abandono.

 Manejo clínico:

 São pacientes de difícil acesso que demandam uma série de habilidades da parte do analista. Segundo Hornstein (2008):

Em seu trabalho com as patologias do desvalimento o psicanalista pode refugiar-se na técnica “clássica” ou pode por a prova sua singularidade e fazer suas opções dentro da diversidade atual da psicanálise. Adeus ao psicanalista “objetivo”, ao receptáculo que recebe as identificações projetivas sem juntar-lhes elementos próprios de sua realidade psíquica por temor a juntar algo de seu próprio repertório. E a neutralidade analítica? O analista é algo mais que o suporte de projeções e de afetos mobilizados pela regressão do paciente. A contratransferência revelará ao analista não só o seu saber como também seus recursos libidinais e relacionais que remetem a sua própria história. Sua subjetividade é uma caixa de ressonância historizante e historizada.

 Prosseguindo nessa linha do pensamento de Hornstein, cabe ao psicanalista atualizar e avaliar algumas questões tais como a relação realidade/fantasia; sistemas abertos/fechados;  séries que se complementam na história linear e recursiva; consistência, fronteiras e valorização do ego; relação verdade material/verdade histórica, assim como, a vivencia real e psíquica desde a infância até a atualidade; a diversidade de dispositivos técnicos que incluem as estratégias e programas. Estes aspectos configuram a trama conceitual que o psicanalista dispõe para aliviar os sofrimentos característicos do desvalimento.

A transferência esperada é referida anteriormente como o “amor gelado” ou afeto sem afeto, desconectado, ou ainda, no dizer de Zimerman, uma transferência natimorta, gerando no psicanalista uma contratransferência de desistência, resultante da identificação do analista com o objeto traumatizante do paciente e sentida como uma relação analítica desanimadora e apática ou contrariamente, uma reação de impaciência, raiva ou intolerância à apatia do paciente, tentando a todo custo retirá-lo de sua passividade. Diante da reação de impaciência do psicanalista, o paciente não será capaz de sentir nada do que lhe é falado, gerando-lhe a sensação de estar sendo invadido e retraindo-se cada vez mais.

Na clínica, a escuta identificará procedimentos discursivos que buscam evitar a intrusão da interpretação ou intervenção do analista. Prendem-se a um discurso inconsistente ou sobre adaptado dificultando ao psicanalista apreender o mundo anímico e confundindo-o quanto a uma pseudo evolução analítica. Maldavsky além de identificar o discurso inconsistente, também fala do discurso catártico que funciona como verborréia contínua  que evita qualquer espaço para a intervenção do psicanalista. É um discurso com prevalência de ansiedade resultando em reações coléricas. Há ainda o discurso numérico ou especulador, desinvestindo o mundo psíquico de características qualitativas em detrimento de características quantitativas, no qual o conteúdo simbólico é substituído por números, notas, scores, graus, quantidades, enfim cálculos. Esses três discursos identificados por Maldavsky são fundamentados na falta de qualificação afetiva, podendo haver relatos de afetos não sentidos pelo paciente e também pelo analista.

Ainda com base nos estudos de Maldavsky,  observa-se três traços de caráter comuns nesses pacientes: a viscosidade, o cinismo e a abulia. A viscosidade se manifesta como necessidade de usar o outro para se apegar a um mundo sensível, que ele é incapaz de sentir. Nessa modalidade de traço de caráter o paciente apresenta uma docilidade lamuriosa que tem como objetivo despertar a compaixão do psicanalista, do outro. Algumas vezes, sensibilizam muito o interlocutor. Na sessão de análise tentam estender o fim da sessão com a introdução de novos temas. A viscosidade visa conduzir o psicanalista à forma de relação vivida pelo paciente, que é esterilizante e frustrante despertando impulsos raivosos no psicanalista estimulando uma reação de se livrar do paciente, e dessa forma, repete seu ciclo de abandono, perda e desamparo. A viscosidade ainda poderá surgir no apego ao psicanalista através de constantes elogios ao seu trabalho, sem, no entanto, operar qualquer mudança eficaz no paciente.

O cinismo aparece na forma sarcástica, de pseudo felicidade e de indiferença, com o objetivo de assegurar e ocultar sua infelicidade de viver sem vida e sem futuro, de um viver desprovido de expectativa e esperança.

A abulia é evidenciada no estado de letargia, monotonia e na manutenção permanente do princípio de inércia, resultante da prevalência da pulsão de morte cujo desejo é “nada desejar”. Em determinados momentos do processo analítico, os pacientes abúlicos podem manifestar incontidos ataques de fúria como reação às tentativas do psicanalista de tirá-los desse estado. A abulia pode se transmitir de geração a geração, configurando o que Maldavsky chama de “linhagem abúlica”, resultado de processos vinculares tóxicos e traumáticos.

Para esse tipo de patologia, o psicanalista deve construir uma clínica do possível por tratar-se de pacientes com difícil acesso, um setting possível para cada paciente, visando um trabalho de análise, mantendo uma freqüência nem sempre desejada, mas possível, agendamentos a cada término de sessão e obtendo assim pequenas seqüências de atendimento.

O objetivo desse tipo de análise não se fundamenta no prazer-desprazer de uma erogeneidade representada, mas no princípio primitivo carente de inscrições psíquicas de tensão-alívio de descargas. Assim sendo, o modelo clássico de livre associação não é um recurso útil para esse paciente, ou seja, não cabe aqui incursionar pelo universo do inconsciente buscando novas significações às experiências vividas ou conexões outras que aliviem o sofrimento do paciente que nos procura, mas sim, lançarmo-nos no aquém, na busca de tornar consciente uma percepção, na medida em que não estamos na busca do que foi expulso, excluído, transmutado, mas do que não foi vivenciado, experimentado. É através da construção de experiências, (cindidas na ordem do sensível -cuidar/sem afeto-, portanto, ação sem sentimento, base sobre a qual o desvalimento se assenta), um caminho possível para se construir significação no vinculo analítico.

Cabe ao analista atuar com todos os seus recursos possíveis, ajudando ao paciente a perceber suas experiências, senti-las, vitalizá-las e pensá-las. Desenvolver no paciente sua função auto-observadora como forma de perceber-se e cuidar-se. Deve funcionar como um possível modelo de mãe viva, capaz de suprir os buracos negros deixados pela “mãe morta” de Green, importando-se, facilitando, reanimando, explicando, reconhecendo, contendo, discriminando, inter-relacionando-se e nunca desistindo do paciente.

Conforme observei em escritos anteriores:

O paciente portador de patologias do vazio demanda a ocorrência de uma regressão dentro do setting. A regressão é imprescindível como uma experiência de ligação. Metaforicamente é como ir buscar a criança do outro lado da rua para que, segura, ela aceite atravessá-la. Proporcionar uma relação de confiança e segurança no setting é importante para que o paciente possa regredir e assim recriar situações primárias do seu conflito vivenciadas com a mãe, na etapa de dependência absoluta. Na relação transferencial com o analista surge a oportunidade do trabalho analítico e terapêutico.

O setting deverá servir como útero psicológico para daí o self encontrar os recursos, antes ausentes, que possibilitem o seu desenvolvimento.

 As sessões e o setting precisam rever as fronteiras do modelo clássico transformando o espaço físico  num lugar de intimidade, de acolhimento tal e segurança irrestrita no qual o virtual se faça realidade, ancorando-se na figura do analista, dando continência ao ódio que é o que o paciente traz; ao contrapor com a disponibilidade desse acolhimento e escuta que cria a relação especular, constituindo assim a polaridade ódio-amor sobre a qual se erguerá um possível Sujeito. Com isto, a análise transita da ação interpretativa, elaborativa e  ressignificativa para uma ação inicialmente puramente construtiva e constitutiva.

A atividade interpretativa será bastante limitada ou praticamente ausente no início da análise de um paciente com patologia do desvalimento, uma vez que, não tendo uma subjetividade constituída em si, o paciente sentirá a interpretação como algo invasivo, que o pressiona, causando um desconforto tal que poderá fazê-lo recuar e abandonar a análise.

Conclusão:

Trata-se de um trabalho de longo prazo, com muitos obstáculos a transpor, avanços e recuos, exigindo do psicanalista a construção de um tempo/espaço analítico lento, porém sólido. Flexibilidade para lidar com os recursos analíticos e acuidade para perceber quando for necessário  introduzir novas intervenções e recursos, assim como, capacidade de fazer ver ao paciente que o psicanalista pode suportar seus ataques e indiferença e ainda assim, sobreviver, estar presente,  servindo como referência (objeto real) ao paciente, são habilidades imprescindíveis ao profissional que se propõe a atender esse tipo de patologia.

Enfim, a vitalidade permanente e ativa, e a maleabilidade do psicanalista servirão como motor nesse tipo de atendimento, promovendo lentas e pequenas mudanças, porém significativas no processo do paciente, que não experimentava nenhuma mudança sob o princípio de inércia, resultando numa transição lenta do domínio da pulsão de morte à prevalência da pulsão de vida possibilitando o movimento de alternância das pulsões que movem a existência humana.

Referencias bibliográficas:

        COSTA, G. P. et al. A Clínica psicanalítica das psicopatologias contemporâneas. Porto Alegre: Artmed, 2010

       GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Editora Escuta, 1988

       FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade. In: FREUD, S. Um estudo autobiográfico, inibições, sintomas e ansiedade, análise leiga e outros trabalhos (1925-1926) Rio de Janeiro: Editora Imago, 1976.

       __________. Luto e melancolia. In: Obras completas, v. 14. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1969, p. 287

       FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica (1895, 1950). Obras completas. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1976

       HORNSTEIN, L. Narcisismo: autoestima, identidade e alteridad. Buenos Aires: Editora Paidós, 2002

       __________.Intersubjetividad y clínica. Buenos Aires: Editora Paidós, 2003

       __________. Patologias del desvalimiento. Instituto de Altos Estúdios en Psicologia y Ciências Sociales, UCES. Disponível em:

       <http://www.uces.edu.ar/institutos/iaepcis/desvalimiento.php> acesso em 21 de Julho de 2011.

       LIGER, O. Um olhar psicanalítico sobre a contemporaneidade e suas emergências. Rio de Janeiro: Editora Livre Expressão, 2010

       MAHLER, M. et al. O nascimento psicológico da criança. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1977.

       MALDAVSKY, D. et al. La intersubjetividad en la clínica psicoanalítica. Buenos Aires: Lugar Editorial. 2007

       ZIMERMAN, D. E. Manual de técnica psicanalítica: uma revisão. Porto Alegre: Artmed, 2004

O divã além da porta

julho 25, 2011 às 9:00 pm | Publicado em Artigos | 1 Comentário
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Texto retirado do site do psicanalista Jorge Forbes (CLIQE AQUI PARA VISITAR) e publicado na revista Psiquê.

“Vocês ponham o divã virado para a porta. Se o paciente quiser sair sem olhar para vocês, ele simplesmente se levanta, abre a porta e vai embora”.

Eu estava no começo de meus estudos de psicanálise, mais ou menos na metade do meu curso de medicina. Quem me ensinava a posição correta no divã da sala de análise era um consagrado psicanalista da sociedade local, terno cinza, camisa branca, cara sisuda de conteúdo, com riso comedido. E ele não ficava aí: a esta pérola da posição do móvel se somavam outros ordenamentos práticos para o correto “setting terapêutico”, como assim era chamado.

Preferencialmente não se devia estender a mão ao paciente, o menor contato físico poderia ser desencadeador de fantasias ancestrais perigosíssimas ao tratamento. Por razão semelhante, nada de fotografias na sua sala. Imagine um psicanalista que mostrasse sua família ou seus amigos, quão perturbador poderia ser.  Melhor mesmo é que nem livros tivesse, para não revelar seu gosto literário, ou sua filiação científica. Vestir-se deveria ser sempre o mais discreto possível: homens de gravata, mulheres de saia abaixo do joelho, sempre de cores pálidas. Não atender, ah, isso era fundamental, não atender pessoas da mesma família, para que a transferência não se misturasse nas intricadas redes afetivo-familiares. Aliás, era melhor também não atender ninguém que morasse nas cercanias do consultório ou da casa do analista, pois já imaginou como seria horroroso, disruptivo mesmo, um paciente ver seu analista de bermudas em uma manhã de domingo comprando um jornal na banca da esquina?

Se para ser analista fosse necessário cumprir estas normas que para mim, apesar da pouca idade, me pareciam compor um forte bestialógico, eu ia ter que escolher outra coisa para fazer na vida. Minha crítica não recaía só sobre o cumprimento bobo dessa cartilha, mas especialmente sobre a ideologia que a sustentava. É fácil perceber que tudo está ali pensado para não “perturbar” o paciente. Ora, ora, uma análise foi feita para fazer dormir, ou para acordar? Assim descrita, ela serviria para não incomodar o paciente em seu sintoma, em seu sono irresponsável e inconsciente. Continuando, percebe-se que havia uma tentativa de transformar o analista, sua pessoa, seu corpo, em algo diáfano, invisível, o mais perto possível da famosa “tela em branco” sobre a qual o paciente projetaria suas angústias, na certeza de não vê-las misturadas com a pessoa que o atendia. Triste e capenga visão do que seja a intimidade de uma pessoa: a lombada de seus livros? Suas fotos? Seus amigos? Sua roupa? Não, nada disso, esses traços podem ser indicações, alusões – e quantas vezes falsas! – mas não dizem do cerne de uma pessoa. Aliás, aí está um dos desafios da psicanálise, o de levar a perceber que todas essas características são apoios provisórios da identidade que um analisando deve ir questionando, um a um, em seu trabalho analítico, desembaraçando-se do peso de suas identificações, para poder alcançar o mais íntimo do seu ser, algo de uma estranheza familiar, como diria Freud.

Já estava pronto para fazer outra coisa na vida, como escrevi – pensei em ser gastroenterologista, pois percebia que a maioria das queixas desse sistema se relacionava mais aos sapos comidos, que a pratos mal preparados – quando me deparei na Livraria Francesa da Rua Barão de Itapetininga, em São Paulo, com um livro de um tal de Lacan, que alguém me havia assoprado muito levemente, só dizendo que tinha ouvido falar que ele vinha afirmando coisas novas na psicanálise, lá pela Paris. Abri seu livro com o título provocador de “Écrits”, como se abre livros ao léu nas estantes das livrarias e me deparei com uma frase impactante, no capítulo intitulado “A direção do Tratamento”: “O analista faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser”. Claro que naquele momento não entendi muita coisa desse quase aforismo, mas entendi o suficiente para me convencer que havia uma outra psicanálise possível, diferente daquela cheia de rituais de isolamento obsessivos, e que eu poderia continuar em meu desejo de ser psicanalista. Apostei: literalmente embarquei e fui conhecer de perto esse verdadeiro acontecimento Lacan. Não me arrependi, continuo a viagem na certeza sempre mais clara que uma intimidade não se apreende nem nos detalhes de decoração, nem nas vestimentas, mas na ética de se responsabilizar, ou seja, de responder por esse desejo que sempre nos interroga. E que viva a Psicanálise, além de qualquer standard.

Clínica Social: inscrições abertas

julho 18, 2011 às 8:12 pm | Publicado em Clínica Social | Deixe um comentário
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A Sociedade Paulista de Psicanálise dispõe de uma Clínica Social de Escuta Psicanalítica.

Para inscrever-se basta entrar em contato na secretária e verificar a disponibilidade de vagas.

Endereço            

Rua Humberto,I 295, 04018-030 São Paulo, Brazil · Obter orientações

Telefone            

(11) 5539-6799

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CURSO DE FORMAÇÃO: INCRIÇÕES ABERTAS

junho 21, 2011 às 5:29 pm | Publicado em Curso | Deixe um comentário
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Língua, Linguagem e Psicanálise

junho 14, 2011 às 4:42 pm | Publicado em Fórum de Debates | Deixe um comentário

No “FÓRUM DE DEBATES” de Junho

 20/06/2011 – das 19h às 22h

A Sociedade Paulista de Psicanálise promove mensalmente o “Fórum de Debates”, com temas diversos e atuais. No debate deste mês, Língua, Linguagem e Psicanálise:

Com esse tema, pretendemos trabalhar com os conceitos de língua e linguagem – enquanto formações simbólicas -, inspirados na linguística moderna fundada por Ferdinand de Sausurre, fundamentais para as releituras lacanianas da obra de Freud. Entre as contribuições, a de que um paciente jamais dirá algo que não esteja contido no sistema de sua língua. Entretanto, muitas confusões ocorrem por conta de imprecisões de conceitos.  Propomos dialogar com a Linguística explorando as dicotomias saussurianas fundamentais, quais sejam, Língua/Fala; Significado/Significante; Diacronia/Sincronia; Sintagma/Paradigma. Todas elas noções essenciais para a compreensão das operações de construção do pensamento, sustentação do seu encadeamento e produção de sentido. A epistemologia discursiva atual que legitima a interface da semiótica com a psicanálise, foi gerada nesse nascimento da linguística saussuriana.

Freud ao propor o “tratamento pela fala” (talking cure) reconheceu na palavra o seu poder mágico. Essa sua tese, desde 1890, nunca foi abandonada, tendo sido essa sua aguda observação o fator relevante para o abandono do método hipnótico, abrindo o caminho para a construção do método psicanalítico. Com isso, Freud se abre para a singularidade do sujeito, para a fala do paciente, resgatando o poder mágico da palavra que se origina na psique. A plasticidade das conexões inconscientes, ora por deslocamento ora por condensação em relação a representação da coisa, não seguem os mesmos mecanismos da língua? Não é afinal a investigação psicanalítica uma arqueologia do sentido, como definiu J. Birman relendo Freud?

Apresentação: Clarisa Junqueira Coimbra,

Psicanalista, comunicóloga e semioticista licenciada pela Université Catholique de Louvain-UCL, Bélgica, e pós-graduada pela FFLCH da Universidade de São Paulo, Departamento de Lingüística. Atualmente faz atendimento clinico em consultório particular e desenvolve projetos editoriais para publicações de arte da Editora Via Impressa.

Investimento: R$15,00 para estudantes / R$ 30 para não estudantes

Dirigido ao público em geral

Inscrições:  antecipadas na secretaria com Beth

De 2ª a 5ª, das 14h30 às 20h30.

Local: Sociedade Paulista de Psicanálise – Rua: Humberto I, 295 – Vila Mariana – Tel.: 5539-6799 – sppsic4@terra.com.br

Inscrições abertas até 17/06/11 Vagas Limitadas

Análise: A Po-ética na Clínica Contemporânea (Gilberto Safra) II

junho 3, 2011 às 7:17 pm | Publicado em Análise | Deixe um comentário
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ANTES DE LER ESSE TEXTO, LEIA AQUI A PARTE I

O escritor Fiódor Dostoiévski, um dos pensadores que inspiraram Gilberto Safra a construir sua obra

INTRODUÇÃO – PARTE 2

Na segunda parte da introdução, para explicar como se baseou para escrever sua obra, Safra fala sobre a importância dos filósofos, escritores e pensadores russos do século XIX, que tinham como objeto de trabalho a ética humana e os sofrimentos decorrentes de seu esfacelamento. O autor considera que temos muito a aprender com esse pensamento russo, já que em nossa época parece ocorrer quebra semelhante do ethos humano (ethos, do grego, significa valores, ética, hábitos e harmonia). Na clínica, o terapeuta é informado, por meio do sofrimento de seus pacientes, desse mal-estar que acomete nosso tempo.

Safra destaca a paixão do povo russo pela filosofia e de como as questões da existência humana fazem parte do dia-a-dia desse povo. Para exemplificar de onde isso surge, cita as aldeias chamadas de mir, que ocupavam o solo russo em uma época antiga. Mir significava, ao mesmo tempo, povoado, mundo e paz. Tratava-se de uma vida comunitária, a vida de um dependia intrinsecamente da vida dos outros.  Por ser uma comunidade rural, a ligação desse povo com a terra era extremamente fundamental. Por isso, para esse povo, era impossível de pensar no ser humano sem o enraizamento na terra, sem considerar a importância do trabalho que a transforma e faz surgir as coisas e sem a convivência com outros seres humanos. Isso tudo forma o ethos humano, que possibilita mir: mundo, paz, aldeia, comunidade.

Outro fator fundamental da unidade russa foi a escolha da religião que seria oficialmente adotada. Segundo a tradição, o Príncipe Vladimir enviou diversos emissários que viajaram com o propósito de encontrar a religião verdadeira que seria adotada na Rússia. Retornaram e descreveram o que viram. A escolha pelo Cristianismo teve o seguinte argumento: eles haviam presenciado diversos cultos religiosos, mas nenhum podia ser comparado com a liturgia na Catedral de Santa Sofia, em Constantinopla (atual Istambul). Segundo eles, a beleza ali era de tal ordem que Deus deveria estar lá. O critério da verdade religiosa, portanto, foi a beleza. E isso ficou impregnado no pensamento russo, e aparece em Dostoievski quando ele afirma que “a beleza salvará o mundo”. Segundo Safra, a beleza, a verdade e o bom são, para o pensamento russo, facetas de um mesmo acontecimento e integram o ethos.

Um olhar para a condição humana

Outro fator histórico fundamental para a criação da tradição russa ocorreu mais tarde, com Pedro, o Grande. Ele considerava a Rússia isolada da cultura europeia e desenvolveu um projeto de abertura de fronteiras. Isso ocorreu com a construção de São Petersburgo. Diante disso, o pensamento russo se dividiu em dois: o eslavofílico e a inteligentsia. Os primeiros eram nacionalistas que queriam preservar a cultura russa da invasão estrangeira e viam o país como salvador do mundo. Já os segundos acolhiam as ideias ocidentais e ansiavam pela queda do Império e a construção de uma nova nação. Iniciavam, assim, a importação do marxismo.

Os autores que Gilberto Safra se apóia neste livro são da inteligentsia, pensadores que estavam preocupados com a questão social e política da Rússia, mas que, conforme a revolução se formatava, ficavam desencantados e desistiam de algumas ideologias para pensar mais sobre a condição humana em si. Exemplos são Fiódor Dostoiévski, Lev Tolstoi, Vladimir Solovyov, Nikolai Fedorov, Pavel Florenski, Nikolai Berdaiev, Sergei Bulgakov, entre outros. Esse pensamento russo ficou conhecido como Idade da Prata e serve como referência para a obra de Gilberto Safra, que explica porque eles são tão fundamentais para entendermos nosso tempo:

Esses autores testemunhavam o esfacelamento cultural que ocorria na Rússia no final do século XIX e no início do século XX e o decorrente adoecer humano. É frequente encontrar em seus escritos a preocupação com o futuro da humanidade, pela condições anti-humanas que pareciam intensificar-se com o passar dos anos. Nos textos desses autores são discutidas essas questões presentes não só na Rússia do início do século XX, como também, em tom profético, os problemas de nosso tempo, em que a natureza humana se estilhaça”

Segundo Safra, a obra desses pensadores recolhe e emoldura a face humana, explicitando o ethos. Eles evitam abstrações racionalistas e criam uma obra resistente à fragmentação da medida humana. Discutem o registro ontológico, existencial do ser humano. Por isso, seus escritos são eternos.

 O excesso de razão adoece o homem

De acordo com Safra, o estudo desses autores foi fundamental para que ele enxergasse o sofrimento humano com uma profundidade que ele desconhecia. Para ele, os pacientes que o procuram na atualidade apresentam um tipo de sofrimento que demanda uma modificação na maneira como se conduz o processo terapêutico. Ele explica:

 “Cada vez mais nos deparamos na clínica com um tipo de problemática humana que nos coloca, como foco e com urgência, o restabelecimento do ethos, o que nos leva ao estabelecimento de uma situação que possibilite o acontecer da condição humana a partir da compreensão daquilo que é ontológico no ser humano. É uma clínica que exige que o profissional possa estar situado no registro ético-ontológico, a fim de que possa ouvir a dor de seu paciente no registro de seu aparecimento”

De acordo com Safra, esse lugar é necessário para que o psicanalista situe-se à frente das queixas de seu paciente, mas sem reduzi-las ao já conhecido, ao simplesmente psíquico. Sem tentar teorizá-las ou apresentar receitas prontas e mágicas. Para o autor, na atualidade, em decorrência da fragmentação do ethos, o tipo de sofrimento da clínica não é apenas decorrente de uma dinâmica psíquica, mas de situações que reclamam a necessidade da constituição do si mesmo e da constituição do psíquico e o re-estabelecimento da ética na situação analítica. Ao ouvir seus pacientes, Safra constatou o mesmo sofrimento dos pensadores russos do século XIX.

“Muitos de nossos pacientes sofrem pelo desenraizamento, pelo fato de terem sido coisificados, reduzidos a ideias ou abstrações. Na atualidade, encontramos pessoas que são filhos da técnica e que sofrem da agonia do totalmente pensável”

Para Safra, os pensadores russos já alertavam para a impossibilidade de reduzir o ser humano em teorias, pois ele jamais poderá ser plenamente revelado ou explicado. Trata-se de uma questão ética, pois tentar enquadrar o ser humano em comportamentos padrões pode adoecê-lo profundamente, criando uma lucidez insuportável, um excesso de claridade. A condição humana acontece no enigmático, no obscuro, no indizível, no mistério. Portanto, analista em dúvida é analista ético. Safra explica sobre o perigo do totalmente pensado:

“Desde o racionalismo, o projeto intelectual do Ocidente tem sido teorizar sobre o ser humano, suspendendo sua condição enigmática e reduzindo-o a uma ideia, uma coisa, a um objeto, a um conceito. No entanto, frente a qualquer tentativa de apreensão intelectual, o homem é um ser que por sua própria natureza desconstrói qualquer formulação racional ou teórica. Compreender o homem através de qualquer conceito universal, seja o econômico, a sexualidade, ou a vontade de poder, é compreendê-lo por meio de uma abstração que o adoece e que instaura uma situação de barbárie silenciosa e imperceptível, que na maior parte das vezes só será compreendida em sua magnitude após muito tempo, quando seus efeitos já forem inegáveis”

A psicanálise está adoecida

Safra explica que essa tentativa de explicar o fenômeno humano cria a chamada hiper-realidade. Trata-se da criação de falsas realidades ou simulacros, que passam a determinar e organizar o viver humano. Toda hiper-realidade constitui o falso e o aparente, o que leva o ser humano ao desenraizamento de seu ethos. M. Epstein, em seu livro After The Future, afirma:

“A inteira vida da sociedade torna-se uma auto-apresentação vazia. Nem partidos políticos ou empresas são realmente criados, mas sim conceitos de partidos e empresas. Incidentalmente, a área mais real, a econômica, é até mais simulada do que todas as outras”

A criação dessas hiper-realidades, segundo Safra, propicia o aparecimento de falsos-selfs, personalidades simulacros, entre outras. No lugar do rosto, instaura-se a máscara.

“O rosto apresenta o mistério, enquanto a máscara, a objetificação. O rosto assinala que o homem nasce como uma indagação, que se desdobra ao longo da vida e que jamais é respondida. Ser indagação é acordar surpreendido pelo destino humano. O mistério coloca-se frente ao homem, com as questões do nascer, do outro, do convívio entre outros, da geração, da precariedade da vida, da morte e da pergunta que sempre se renova”

Na clínica contemporânea, constata Safra, as pessoas chegam para análise em desespero profundo por não encontrarem o rosto em si e no outro. Vivem como máscara entre máscaras e, no momento que a retiram, há um nada. Frente ao outro se perguntam: há alguém atrás dessa máscara? Essas são as agonias que testemunham as hiper-realidades. Esses pacientes clamam pela possibilidade de vir a formular as questões do destino humano. De acordo com o psicanalista, elas vivem na agonia do terrível, aspirando pelo sofrimento. Uma coisa é a agonia do não-ser. Outra é a oportunidade de sofrer em decorrência dos acontecimentos inerentes ao destino humano. Sofre apenas aquele que se apresenta rosto frente a outros rostos. Quem está de máscara apenas agoniza.

Por fim, para fechar a Introdução e seu pensamento, Safra afirma, com preocupação, que a própria psicanálise está adoecida, pois na maior parte das vezes está assentada sobre hiper-realidades. É preciso rever a atividade clínica, que deve estar ancorada no mistério e posicionada sobre o ethos humano. Safra, no fundo, propõe um aprofundamento ligado à frase dita por Freud: “Aonde quer que eu vá, eu descubro que um poeta esteve lá antes de mim”. É na subjetividade poética que o mistério da condição humana é celebrado. Safra, por isso mesmo, fecha o capítulo com um poema de Mário de Andrade que resume um pouco a condição humana:

 Esse homem que vai sozinho

Por estas praças, por estas ruas,

Tem consigo um segredo enorme

É um homem

 

Essa mulher igual às outras

Por estas ruas, por estas praças,

Traz uma surpresa cruel,

É uma mulher

 

A mulher encontra o homem

Fazem ar de riso, e trocam de mão,

A surpresa e o segredo aumentam.

Violentos.

 

Mas a sombra do insofrido

Guarda o mistério da escuridão.

A morte ronda com sua foice.

Em verdade, és noite.

 

Análise: A Po-ética na Clínica Contemporânea (Gilberto Safra)

maio 30, 2011 às 2:35 pm | Publicado em Análise | 5 Comentários

Iniciamos neste espaço uma análise de livros sobre psicanálise. O primeiro escolhido é o terceiro livro do psicanalista Gilberto Safra, uma das obras mais impressionantes da atualidade. Safra é um pensador que domina a psicologia, a psicanálise, a filosofia e apresenta uma forte influência da literatura. Neste livro ele propõe uma nova visão da clínica contemporânea, mais do que necessária para a complexidade dos pacientes dos tempos de hoje. Analisaremos o livro capítulo por capítulo. Hoje começamos a Introdução, importante para entender a ideia geral do pensador. No início da próxima semana pretendemos colocar a parte dois dessa Introdução.

INTRODUÇÃO – Parte 1

“A aparência se adere ao Ser, somente a dor pode arrancá-lo da aparência. Os opostos não são o prazer e a dor, mas sim suas respectivas espécies. Existe um prazer e uma dor infernais, um prazer e uma dor curativos, prazer e dor celestes”, Simone Weil, em Cuadenos

Safra inicia o livro contando a história de Mário, um garoto de quatro anos que se sentia desalojado do mundo, distante dos amigos e impossibilitado de brincar. A mãe, percebendo a situação, decide levá-lo a um analista. O terapeuta em questão guardava em sua sala brinquedos e materiais para as crianças que atendia. Mário, logo que chegou, pegou uma bacia cheia de água, jogou nela um soldadinho de plástico e, mexendo com um lápis, formou um redemoinho. Um redemoinho de angústia. Olhou de forma dolorosa para o terapeuta e, com voz sussurrante e longínqua, gritou: “Socorro, Socorro”. Surpreso, o profissional logo percebeu que apenas testemunhar tal dor não era suficiente: era necessário agir.

Com outro soldadinho, o terapeuta chegou à beira da bacia com o intuito de alcançar o soldadinho do menino. Mário, no entanto, pegou o soldadinho do terapeuta e o jogou dentro do redemoinho. O terapeuta entrou na fantasia e também gritou: “Socorro, Socorro”. Os dois soldadinhos giravam no mesmo redemoinho de angústia. Mário pensou um pouco e pegou um terceiro soldadinho e um pedaço de madeira. Foi ao encalço do soldadinho dele e do soldadinho do terapeuta. A madeira se transformou em balsa. Safra explica: “Esse menino desvelava com seu terapeuta o que necessitava, o que precisava ser estabelecido para que uma viagem pela existência fosse possível. Nascer? Só com uma balsa. Ele mostrava com precisão as dimensões de seu sofrimento e a maneira pela qual o outro podia ir a seu encontro para auxiliá-lo a atravessar o impasse no qual se encontrava”.

Angústia é conhecimento instintivo

Para Safra, situações como essa surgem diariamente no trabalho clínico. Muitos pacientes, independente da idade, demonstram um conhecimento de si que parece brotar da angústia mesma, que revela as dimensões do sofrimento e da fragilidade humana. Esse conhecimento não é aprendido, ele ocorre pelo próprio fato do ser humano ser jogado em meio à existência na busca de condições que possibilitem seu alojamento – mesmo que precário – no mundo com os outros.  Em sua solidão essencial, o ser humano precisa ser acolhido no abraço e no olhar de alguém para que um iniciar-se aconteça. É aí que existe a possibilidade de vir a ser. O homem, portanto, vive sempre na fronteira entre o ser e o não ser. Safra explica:

“O homem se encontra na fragilidade do entre: entre o dito e o indizível, entre o desvelar e o ocultar, entre o singular e o múltiplo, entre o encontro e a solidão, entre o claro e o escuro, entre o finito e o infinito, entre o viver e o morrer”.

Para Safra, é pela fala que o ser humano pode desvelar quem ele é e o que vive. O dizer ao revelar também vela, pois o viver humano não pode ser plenamente dito; entre o dizer e o indizível emerge o falar poético.  Na clínica, o terapeuta testemunha esse falar em que a palavra não se fecha, mas se abre para o não dito.

Mistério é liberdade

Na análise, sentimo-nos desnudados, mas é importante que a visibilidade ali não seja exercida de modo que se perca o mistério e o segredo sobre o que é o ser. Um olhar fechado – onisciente e aprisionante – deve estar longe da clínica. É preciso respeitar os mistérios do existir. O paciente deve ser encontrado e não devorado. Para Safra, é preciso encontrar um meio termo, um “entre” nessa situação. Safra, de maneira brilhante, explica sobre a agonia do totalmente indizível e também do totalmente pensado:

“A queda plena no indizível, no oculto, na solidão, no escuro, leva o individuo às agonias impensáveis, ao sofrimento sem morte, ao fora absoluto que o torna andarilho sem sombra. Por outro lado, o deslizamento para o dito, para o desvelamento, para o mundo, para o claro, leva-o ao encarceramento na imanência e à morte da coisa. É a agonia do totalmente pensado”

Safra exemplifica isso com uma criança de cinco anos que ele atendia. Em um diálogo sobre o medo, a paciente, instintivamente, formulou uma das grandes questões humanas:

– Eu tenho medo de ladrão, de fantasma e da morte dos meus pais. – ela disse.

– Mas qual é o seu maior medo? – perguntou o analista.

– Meu maior medo é entrar no quarto escuro e lá pode ter um ladrão escondido.

Um tempo de reflexão e ela volta atrás:

– Não, não é isso… O ladrão fui eu que inventei, eu tenho medo puro… É mais fácil ter medo do ladrão do que ter medo puro.

O medo da menina era a queda no escuro, a queda no nada…

Pulsão X Ontologia

De acordo com Safra, a impossibilidade do acontecer humano – seja pelo excesso de claridade ou de escuridão – leva o individuo a um sofrimento enlouquecedor. Não se trata, portanto, apenas de um problema psíquico ou de um conflito pulsional, mas algo que se refere à própria ontologia do existir humano. O encontro com a balsa, descrito no início desse texto, possibilita habitar o mundo, pois existe outro para lhe auxiliar na caminhada. Isso possibilita um conhecimento sobre a ética do ser, que não é aprendida, mas se constrói na relação com o outro. É preciso ter elementos para morar no mundo entre os outros. É preciso construir uma ética para tanto.

A quebra da possibilidade da construção desses elementos leva a um sofrimento que – apesar de alcançar o registro psíquico – não tem origem no psíquico. São os sofrimentos que acontecem no registro ontológico, no próprio existir. A clínica, portanto, caracteriza-se pelo cuidado que permite estabelecer as condições necessárias ao acontecer humano. A clínica é ética. Safra estabelece assim uma preocupação com a técnica em detrimento dessa ética:

“Nessa perspectiva, cai por terra toda concepção que busca definir a situação clínica a partir de procedimentos técnicos. A técnica, assim compreendida, joga o paciente em direção ao conceituável, roubando-lhe o indizível e os mistérios de seu ser. Esse é o homem-coisa e não mais ser, não mais presença”.

O cuidado ético citado por Safra, que permite o surgir do si mesmo no paciente, é reconhecido por uma experiência de qualidade estética, de encanto, de júbilo, de sagrado. A ética se desvela como beleza, como presença de si e do outro. O individuo que está no mundo dispõe de um olhar ético que lhe permite reconhecer as condições inóspitas para o ser humano por um conhecimento decorrente da maneira como aconteceu sua entrada no mundo.  As condições necessárias ao acontecer e à presença humana estão ligadas com essa ética. Para Safra, é preciso uma crítica às situações do nosso tempo para com essa ética do ser para possibilitar que o homem se situe no mundo e tenha condições de vir a ser. A clínica, que é a própria ética representada, deve ajudar a construir essa possibilidade.

EM BREVE, PARTE 2

Sugiro o contato com o pensamento de Gilberto Safra. VEJA O SITE DELE AQUI.

Doenças psiquiátricas roubam mais anos de vida do brasileiro

maio 10, 2011 às 5:49 pm | Publicado em Notícias | Deixe um comentário
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Fonte: Angela Pinho (Folha de S.Paulo)

Com mudanças no estilo de vida dos brasileiros, os transtornos psiquiátricos passaram a ocupar lugar de destaque entre os problemas de saúde pública do país.

De acordo com dados citados em uma série de estudos sobre o Brasil, publicada ontem no periódico médico “Lancet”, as doenças mentais são as responsáveis pela maior parte de anos de vida perdidos no país devido a doenças crônicas.

Essa metodologia calcula tanto a mortalidade causada pelas doenças como a incapacidade provocada por elas para trabalhar e realizar tarefas do dia a dia.

Segundo esse cálculo, problemas psiquiátricos foram responsáveis por 19% dos anos perdidos. Entre eles, em ordem, os maiores vilões foram depressão, psicoses e dependência de álcool.

Em segundo lugar, vieram as doenças cardiovasculares, responsáveis por 13% dos anos perdidos.

Outros dados do estudo mostram que de 18% a 30% dos brasileiros já apresentaram sintomas de depressão.

Na região metropolitana de São Paulo, uma pesquisa, com dados de 2004 a 2007, mostrou que a depressão atinge 10,4% dos adultos.

Não é possível dizer se o problema aumentou ou se o diagnóstico foi ampliado, diz Maria Inês Schmidt, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e uma das autoras do estudo.

Ela afirma também que são necessários mais estudos para saber de que forma o modo de vida nas cidades pode influenciar o aparecimento da depressão, além das causas bioquímicas.

No caso da dependência de álcool, no entanto, há uma relação com o estilo de vida, uma vez que pesquisas recentes do Ministério da Saúde apontam um aumento no consumo abusivo de bebidas.

IDADE AVANÇADA

O envelhecimento da população também contribui para o aparecimento de transtornos psiquiátricos.

De acordo com o estudo, a mortalidade por demência aumentou de 1,8 por 100 mil óbitos, em 1996, para 7 por 100 mil em 2007.

“O Brasil mudou com consumo de álcool, envelhecimento e obesidade e, com isso, temos novos problemas de saúde”, disse o ministro Alexandre Padilha (Saúde).

Em relação às doenças psiquiátricas, ele afirmou que a pasta irá expandir os Caps (centros de atenção psicossocial) e aumentar o número de leitos para internações de curto prazo.

A série de estudos do “Lancet” coloca como outros problemas emergentes de saúde diabetes, hipertensão e alguns tipos de câncer, como o de mama. Eles estão associados a mudanças no padrão alimentar, como o aumento do consumo de produtos ricos em sódio.

Por outro lado, a mortalidade por doenças respiratórias caiu, principalmente devido à redução do número de fumantes.

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